Apresentação

Este Blog, criado por dois advogados e professores de Direito Processual Civil, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (da UFAL) e Roberto Campos Gouveia Filho (da UNICAP), tem por finalidade precípua despertar a comunidade científica para o debate sobre a obra (não apenas, embora preponderantemente, jurídica) do mestre alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Todos são bem-vindos, sejam aqueles que seguem a obra, que a criticam ou, até mesmo, que a desconhecem.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Primeiras Considerações Acerca da Nova Usucapião Familiar

Em conjunto com o professor da FDR-UFPE e UNICAP Roberto Paulino de Albuquerque Jr., escrevi, em julho do corrente ano, um breve arrazoado sobre alguns aspectos materiais e processuais da novel usucapião familiar, inscrita no art. 1.240-A, CC. O texto foi publicado na última Revista de Processo, a de n. 199.

Abaixo segue o inteiro teor dele.


      Em 16 de junho deste ano foi promulgada a Lei 12.424/2011, cuja finalidade principal foi alterar a Lei 11.977/2009, que trata do programa federal de habitação popular “Minha casa, minha vida.”
      Seu art. 9.º traz importante inovação, que consiste na criação de um novo suporte fático de usucapião, adicionando ao Código Civil o art. 1.240-A. Ao dispositivo em questão foi dado o seguinte texto:
“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1.º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 2.º (Vetado.).”
      O efeito da regra transcrita parece ser claro. Presentes seus requisitos, o cônjuge (ou companheiro:[1] seja a elipse doravante suposta) que permanece no imóvel adquirirá por usucapião a fração ideal que pertencia ao outro. Pode-se dizer que a norma consagra uma espécie de consolidação ou direito de acrescer, tornando-se o cônjuge remanescente proprietário exclusivo.
      Essa consolidação decorre, sem dúvida, de uma nova modalidade de usucapião, dada a aquisição do domínio por posse prolongada, modalidade esta que pode ser denominada de usucapião familiar.[2] [HFürst1] 
      Como se trata de usucapião, não é preciso que o cônjuge manifeste qualquer intenção de adquirir a meação do imóvel que pertence ao coproprietário – a aquisição decorre de ato-fato jurídico, em que a vontade é irrelevante, pois é abstraída pela norma jurídica. O suporte fático normativo dos “atos-fatos” jurídicos não tem, pois, a vontade como um de seus elementos. Basta, para sua concreção, apenas a mudança fática causada pela conduta (positiva ou negativa) humana. A vontade, nesse caso, se existir, não é juridicizada pela incidência, ficando restrita ao mundo fático.[3]
       Com a redução do prazo para dois anos de posse exclusiva depois da separação de fato, busca a regra privilegiar aquela que é a finalidade essencial de toda usucapião, a proteção da segurança jurídica.[4]
     Não se trata, portanto, de sanção ao cônjuge que deixa o lar, mas sim de uma forma de pôr fim ao condomínio, afastando o bem da partilha e regularizando a propriedade plena daquele que permaneceu no imóvel antes comum, não raro mantendo a guarda dos filhos.
     Os elementos necessários à configuração do suporte fático do art. 1.240-A do CC/2002 são os seguintes: (a) não ter o imóvel área superior a 250m², nem ser o usucapiente proprietário de outro imóvel urbano ou rural; (b) compropriedade do imóvel com o cônjuge; (c) posse exclusiva por dois anos, para moradia própria ou de sua família, contados do “abandono do lar” pelo cônjuge.
     A extensão e a ausência de outro imóvel vieram à regra por cópia do art. 183 da CF. Não parecem necessárias maiores digressões quanto a eles, ao menos não neste momento inicial, em que os requisitos (b) e (c) reclamam, sem dúvida, maior atenção da parte do intérprete.
    Quanto à letra (b), deve-se observar: não há usucapião bienal se o imóvel não pertencer a ambos os cônjuges.
     A finalidade da nova regra, como dito, é dar segurança ao status do coproprietário que possui o bem com exclusividade após a cessação da composse, retirando-o da partilha. Não pode o art. 1.240-A do CC/2002 ser alegado para acelerar, portanto, usucapião de imóvel de terceiro em que os cônjuges residam quando da separação.
    Não exige a norma, entretanto, que o imóvel tenha ingressado no condomínio por força da eficácia do regime de bens. Não é relevante que tenha o casal adquirido o imóvel por negócio gratuito ou oneroso, por título inter vivos ou mortis causa, ou mesmo que a aquisição se tenha dado antes do casamento ou união estável. Basta, para este fim, que quando da dissolução fossem ambos proprietários do bem.
    Por outro lado, dada a carga eficacial predominantemente declarativa da sentença de usucapião,[5] se os cônjuges já completaram o prazo para usucapir (de cinco, dez ou quinze anos) e não propuseram ainda a ação própria quando sobrevém a separação, passa a fluir o prazo bienal, pois já eram proprietários.
     Quanto ao “abandono” previsto no suporte fático, é preciso ter máximo cuidado.
     A infeliz e dúbia referência do legislador deve ser lida simplesmente como indicativa de separação de fato.
     A separação de fato, que mesmo depois da extinção da separação de direito pela Emenda 66/10 continua a existir e a produzir importantes efeitos jurídicos, como o da suspensão da eficácia do regime de bens,[6] passa a irradiar um novo efeito, que é o da contagem do prazo de usucapião bienal. E só.
    Abandono aqui não se deve entender como referência ao ato ilícito caracterizado pela infração do dever de vida em comum no domicílio conjugal (art. 1.566, II, do CC/2002). Salvo os deveres de mútua assistência e guarda, sustento e educação dos filhos, tem-se sustentado que os demais não são cogentes,[7] tendo sido há anos afastada de todo a função da culpa na dissolução do casamento.[8]
   Logo, não há por que duvidar de que o abandono previsto no art. 1.240-A do CC/2002 seja recepcionado como ato-fato lícito caducificante.[9] Dessa importante conclusão decorre a confirmação de que a usucapião familiar não corresponde a nenhum tipo de sanção para o cônjuge que se retira do lar conjugal. Pouco importa a aferição de culpa, quer para o deferimento do divórcio e apuração de seus efeitos, quer para a concessão da usucapião sobre a outra metade do imóvel de moradia. E neste sentido, o usucapiente pode, perfeitamente, ser o “culpado” à luz da teoria clássica do direito de família.
    Após enunciar os pressupostos da nova usucapião, cabe suscitar alguns questionamentos sobre o seu procedimento. 
     A que juízo compete processar a usucapião familiar? Embora se trate de dispositivo fadado à polêmica, não será possível aplicá-lo sem reconhecer a relação familiar, que se no casamento é formal e pressuposta, na união estável exige prova específica. Por outro lado, é preciso igualmente fazer prova da separação de fato, em qualquer dos dois casos. Ademais, o reconhecimento da usucapião no prazo bienal afeta diretamente a partilha, por afastar dela o bem cuja meação foi usucapida. Logo, parece razoável concluir que a competência pertença ao juízo apontado, na lei de organização judiciária do estado-membro ou do Distrito Federal, como competente para conhecer da dissolução do casamento ou união estável e da partilha de bens, evitando a remessa à vara cível de questões que lhe são estranhas.
     Por fim, não parece ser necessário, no específico caso da usucapião familiar, que o processo siga o procedimento especial da ação de usucapião, previsto nos arts. 941 a 945 do CPC.
Explica-se: o rito especial, com toda a sua complexidade, tem uma função particularmente clara, que é a de formalizar uma relação processual que se dá contra todos, para a declaração de que foi adquirido o direito real, cujo exercício se dá erga omnes.[10] A especialidade de tal procedimento está no edital convocatório dos réus hipotéticos, fixado no art. 942 do CPC. Trata-se de uma técnica de sumariedade de cunho pré-processual. Como, de acordo com o exposto acima, não há réus hipotéticos em tal ação, o procedimento especial não tem o menor sentido.
      Na nova modalidade de usucapião, este aspecto deixa de ter relevância. Se os cônjuges precisam ser titulares em conjunto do domínio sobre o bem, não há como ferir interesses de terceiros. Nem mesmo os confinantes poderão ser prejudicados, pois o pedido deve se restringir à declaração de aquisição da meação do cônjuge condômino no imóvel, nos estritos limites do direito previamente reconhecido. Por isso, o interesse em contestar a demanda pertence exclusivamente ao cônjuge que se retira do lar, sendo desnecessária a citação dos demais.
      Se por acaso os antigos coproprietários tiverem adquirido o bem por usucapião e, por qualquer motivo, não ter havido declaração judicial da propriedade, pode o cônjuge ou companheiro propor contra o outro a ação de usucapião, não para, obtendo a declaração judicial, criar a matrícula do imóvel ou alterar o registro, algo que seria inviável, mas sim para ver declarado que o imóvel não mais compõe, pela ocorrência da novel usucapião, a comunhão.
      Frise-se que, nesse caso, não seria possível a cumulação de ações – ação de usucapião contra todos (aquele em cujo nome o imóvel esteja registrado, se de fato existir, os confinantes e os outros réus hipotéticos) e ação de usucapião contra o cônjuge ou companheiro – pois o procedimento especial dos arts. 941 a 945 do CPC, seria incompatível com tal cumulação (óbice do art. 292, § 1.º, III, do CPC). Além disso, tal cumulação, se efetivada, seria do tipo sucessiva[11] e com uma pluralidade de sujeitos passivos incompatível com as regras vigentes do litisconsórcio, pois, na primeira ação cumulada, ambos os comunheiros seriam autores (ou, no mínimo, haveria a necessidade de citação do que não demandasse, na ratio do art. 47, parágrafo único, CPC) e, na segunda, um dos comunheiros haveria de ser réu, sem existir qualquer autorização legal para tanto.

Recife, 31 de outubro de 2011.

Roberto P. Campos Gouveia Filho.


[1] No contexto atual, não parece haver fundamento para afastar da incidência da regra do art. 1.240-A do CC/2002 os companheiros em união homoafetiva.
[2] A expressão deve-se aMarcos Ehrhardt Jr.: Ainda sobre o art. 1.240-A do CC, na busca de uma interpretação mais adequada: usucapião familiar? Texto gentilmente nos cedido pelo autor.
[3] Sobre a caracterização da usucapião como ato-fato jurídico, ver: Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. 11, p. 117-118; Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 142.
[4] Sobre a tutela da segurança na usucapião, consulte-se, por exemplo, Gambaro, Antonio; Morello, Ugo. Tratatto di diritti reali. Milano: Giuffrè, 2010. vol. 1, p. 873-874.
[5] Por todos, Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p. 147.
[6] Albuquerque Júnior, Roberto Paulino. O divórcio atual e sua repercussão no direito das sucessões. In: Ferraz, Carolina Valença et alii (orgs.). O novo divórcio no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 346-347.
[7] Lôbo, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 142.
[8] Confira-se Oliveira, Maria Rita de Holanda Silva. As causas legais da separação e a realidade social: estudo sócio-jurídico. In: Albuquerque, Fabíola Santos et alii. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodium, 2010. p. 183 e ss.
[9] Sobre os atos-fatos caducificantes, Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. Op. cit., p. 140-143. Confira-se Oliveira, Maria Rita de Holanda Silva. As causas legais da separação e a realidade social: estudo sócio-jurídico. In: Albuquerque, Fabíola Santos et alii. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 183 e ss.
[10] “Na ação de usucapião, são partes o autor (legitimado ativo) e todos. (...) O procedimento edital é pressuposto necessário da relação jurídica processual da ação de usucapião: somente por ele se pode completar a angularidade da relação jurídica processual: autor, Estado; Estado, todos interessados. A propriedade é direito com sujeito passivo total; as ações declarativas só podem ter eficácia sentencial entre as partes.” Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado das ações. São Paulo: Ed. RT, 1971. t. 2, p. 258-259.
[11] Sucessiva porquanto, para segunda ação de usucapião ser acolhida, é necessário que a primeira seja procedente. Em suma, o comunheiro só pode usucapir um bem do outro se, e somente se, ambos, anteriormente, tiverem-no usucapido de outrem.

 [HFürst1]Srs. Autores, por gentileza, verifiquem o link informado. Não conseguimos acessá-lo deste editorial. Grato.


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA: RAZÕES DE UMA DISCORDÂNCIA


     A nota abaixo é a transcrição literal de um posicionamento por mim tomado no grupo de discussões virtual do IBDP (Insituto Brasileiro de Direito Processual) - N/NE. Como ocorre na maioria dos casos, posicionei-me contrário ao modismo presente na Ciência do Processo. Como a maioria das opiniões lá eram favoráveis ao tema, mas, a meu ver, boa parte delas, eram despidas de maiores fundamentos teóricos, resolvi escrever uma mensagem eletrônica maior, cujo título é o mesmo desta nota. Vamos a ela.

      Prezados,

     Resolvi explicitar o porquê de minha convicção contra o problema da relativização. Seguem, abaixo, as razões:

      a) muitos dos problemas relacionados à coisa julgada, na verdade, nada tem a ver com ela. Por exemplo, o falso problema do art. 741, p. único, CPC, que, como bem analisou Beclaute, é referente à eficácia executiva da setença que pode ser encoberta pelo exercício por parte do executado de uma exceção gerada pela decisão do STF em controle abstrato de constitucionalidade. Em suma, temos, nesse caso, por expressa previsão legal, uma regra que, senão extingue, possibilita o tolhimento da eficácia executiva da sentença, algo que ocorre, mutatis mutandis, de há muito, com a prescrição da pretensão executiva (que exsurge da eficácia da sentença). Vejam que, se bem entendermos a distinção entre eficácia da sentença, imperatividade do ato estatal e coisa julgada, nos moldes feitos por Pontes de Miranda (obviamente, não ignoro a contribuição de Liebman para o tema, sua tese, todavia, é, no mínimo, incompleta, não só por não trabalhar com as cinco eficácias, mas também por emaranhar, ao não trabalhar com o conceito de ação material, os planos material, pré-processual e processual do direito), problemas como este em comento passam ao largo da coisa julgada;

      b) como bem disse Marinoni, num dos melhores livros dele, a coisa julgada não é objeto do discurso jurídico, como são outros conceitos como o de vida, liberdade, patrimônio, dignidade. Tais noções devem ser descobertas processualmente. A coisa julgada não, ela é pressupostos do discurso jurídico, é o que faz dele distinto de outros discursos como o da moral e o da política.  É óbvio que não estou a dizer que toda decisão judicial deve ser apta a gerar coisa julgada (minhas bases ovidianas bem demonstram isso), mas o mínimo de previsão dela é indispensável (premissa lógica) para a definição do discurso jurídico. Desse modo, a coisa julgada não pode ser objeto de ponderação, do tipo: coisa julgada x dignidade, coisa julgada x verdade real (sem adentrar na problemática em torno desta última, que, a meu ver, é infrutífera);

   c) não obstante, partindo da ideia de que a coisa julgada pode ser descoberta processualmente, cometeríamos um erro de método ao, em princípio, por de lado a coisa julgada em face de outros valores como o da verdade (norte do leading case). Não há ponderação feita em hipótese. Ou o legislador deixa margem para a ponderação no caso concreto ou não o faz. Penso, por exemplo, ainda com Marinoni, que a vedação do uso de meios probatórios ilícitos, no âmbito do processo penal, foi de toda completada pelo legislador;

     d) talvez o maior problema dentro da discussão do tema seja o relativo às premissas da TGD. Muitos do que escrevem sobre a relativização sequer têm noção dos três planos do fenômeno jurídico. Do tipo, dizer que a norma inconstitucional (e, pior, a decisão que nela se baseia), é inexistente. Maior abusrdo não pode existir. Esquecem, ou ignoram, por exemplo, que Marcelo Neves (a meu ver, o maior jurista brasileiro vivo), ainda nos albores de sua vida acadêmica, aplicando, de certo modo, a tese ponteana, definiu a norma inconstitucional como pertinente ao sistema (= existente) e eficaz (portanto, apta a incidir) até ser desfeita pela decretação de sua inconstitucionalidade. Façam uma coisa, perguntem as pessoas ligadas a vocês e estudiosas do direito constitucional se já leram este belo trabalho (Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. Saraiva, 1988).  Perguntem, do mesmo modo, se já leram o livro de Jorge Miranda Contributo à Teoria da Inconstitucionalidade, o qual trabalha com o problema como de inexistência jurídica. Garanto que em bom número o conhecimento da obra do jurista lusitano é maior. Um retrato de nossa Ciência Jurídica: o de fora é sempre melhor;

     e) ainda no tema, muitos autores, como Dinamarco, chegam ao absurdo de dizer que decisões injustas não podem ser consideradas. Ora, na ótica do direito positivo, o que seria uma decisão injusta senão aquela que é violadora das normas jurídicas? Chegam, até mesmo, ao absurdo de proclamar a inexistência das decisões;

    f) mas, a meu ver, o maior problema é: quem vai garantir a justeza da decisão relativizadora? Não há nada no sistema que o faça. A não ser, numa total inversão de valores, a própria coisa julgada. Parece que tal questionamento, lançado pelo  professor Ovídio Baptista da Silva, ainda não tem, a meu ver, resposta. Foi isso que destruiu a teoria de Francesco Carnelutti, pois, ao fim e ao cabo, pode não haver uma justa composição da lide, de modo que, por via oblíqua, ele acabava definindo a atividade jurisdicional como a que produz coisa julgada;

      g) por fim, como processualizar a ação material (mesmo, aqui, faço questão de ser fiel as minhas bases) de relativização? Caso a causa tenha chegado ao tribunal, o juízo de 1a. instância pode processá-la e jugá-la? É algo que precisa ser respondido.
  
    Quero dizer, como conclusão, que não sou contra a discussão, no âmbito da Política Jurislativa, da relativização da coisa julgada. Estamos, inclusive, num momento propício para tanto em virtude do Projeto do NCPC. Acho, ademais, que toda a problemática em torno da formação e do desfazimento da coisa julgada é de viés infraconstitucional. Não concordo, todavia, com a ideia de deixar para órgão jurisdicional a última palavra sobre o tema.
  
      No aguardo das considerações e, principalmente, das críticas de todos.

      Recife, 15 de abril de 2011.

                                                                Roberto P. Campos Gouveia Filho

PRECLUSÃO DE DIREITOS PRESTACIONAIS: O CASO DO DIREITO AO REMÉDIO PROCESSUAL DO MANDADO DE SEGURANÇA


        Como é de conhecimento de alguns, defendo que o direito ao remédios jurídicos processuais (mandado de segurança, por exemplo) e as pretensões a ele correspondentes são, tal como a pretensão à tutela jurídica, de natureza pré-processual. O plano pré-processual é, a meu ver, aquele que não é material, pois as situações jurídicas nele previstas não compõem, ao menos num primeiro momento, a res deducta. Não é processual, de outro modo, porquanto, antecedendo ao processo, seu conteúdo não diz respeito ao desenvolvimento válido e regular deste último.

        Sendo assim, os direitos aos remédios jurídicos processuais seriam prestacionais, no sentido que a eles correspondem deveres do Estado, ou seriam potestativos? Penso, por ora, na primeira hipótese. A pretensão, situação típíca dos primeiros, dá-se no poder de exigir do Estado a prestação jurisdicional pelo uso do remédio.

       Partindo dessa premissa, a tese de Agnelo Amorim Filho (exposta ainda na década de 60 e atualmente festejada atualmente), poderia ruir no ponto em que, por ela, se preconiza que apenas os direitos formativos poderiam decair (rectius: precluir). É o caso, por exemplo, do direito ao remédio processual específico do mandado de segurança, o qual, salvo mínimas exceções, preclui.

      Recife, 15 de abril de 2011.

                                                                        Roberto P. Campos Gouveia Filho

domingo, 14 de agosto de 2011

O PROBLEMA DO DITO EFEITO SUSPENSIVO DOS RECURSOS: QUESTÃO TRADICIONAL DE MINHAS PROVAS


    A cadeira de Direito Processual Civil III, relativa aos meios de impugnação às decisões e ao processo nos tribunais, sempre foi marcante em minha vida. A começar porque na graduação tive a oportunidade de pagá-la com o professor, e hoje amigo do peito, Alexandre Freire Pimentel. Em seguida, pelo fato de em tal momento os professores Fredie Didier Jr. e Leonardo Cunha, este, outro amigo do peito; aquele, ligado a mim por, dentre outras coisas, laços familiares, estavam por escrever um livro sobre o tema, que hoje é o v. 3 do Curso de Direito Processual Civil capitaneado por Fredie. À época passando uma temporada com Fredie, tive a oportunidade impar de participar das discussões entre ambos para a feitura do livro.

     Minha relação como professor da disciplina, todavia, nunca foi das melhores, sempre achei a cadeira menos interessante de todo o Direito Processual Civil, com exeção para os temas relativos aos recursos extraordinários e à ação rescisória. Hoje, estou praticamente afastado dela, algo que, espero, continue por um longo tempo. 

     Uma análise que sempre achei complicada na doutrina ordinária foi a relativa ao chamado efeito suspensivo do recurso. Para mim, salvo honrosas exceções, o tema sempre foi muito superficial. Explorei bastante o tema com meus alunos durante os quase quatro anos que lecionei a disciplina.

     Em minhas provas uma questão sempre foi tradicional. Embora o tema fosse sempre visto e ressaltado por mim em aula, sendo a questão praticamente mencionada nela, muitos alunos sempre se complicaram na prova. Como não vou mais lecionar a disciplina, posso publicá-la aqui: "João ingressou com uma demanda visando declarar não ser devedor de Pedro. Além disso, requereu, liminarmente, uma antecipação dos efeitos da tutela, a fim de que fosse sustado um protesto, fundado na dívida discutida, feito pelo réu. Logrou êxito em seu pleito liminar; tendo, todavia, seu pleito declaratório rejeitado. Contra a sentença, João interpôs recurso de apelação, o qual foi recebido pelo juízo apelado no efeito devolutivo. Não satisfeito, o apelante interpõe agravo de instrumento para o tribunal competente. Por ele, alega ter o juízo agravado cometido um grave erro de avaliação, pois deveria ter recebido (declarado) o apelo no duplo efeito, algo que, a seu ver, teria restaurado a ordem de sustação do protesto, objeto da decisão antecipatória. Do exposto, pergunta-se: à luz do direito positivo e das lições vistas em aula, agiu corretamente o juízo apelado?" Fundamente.        

     Muitos dos alunos que erraram a resposta baseavam-se em livros tradicionais. O citado livro de Fredie e Leornado deixa margem para a ideia clássica, que, a meu ver, é equivocada. Em colaboração, envei-nos uma mensagem eletrônica expondo as razões de minha divergência. Não é que eles pensassem de modo equivocado; apenas não estava claro no livro. A mensagem foi a seguinte: "No livro de vocês (p. 121 da última edição) consta algo que, a meu ver, deve ser revisto. Vocês falam que, se a sentença é de improcedência do pedido, uma eventual decisão antecipatória da tutela cessa, e o efeito suspensivo do apelo não tem o condão de restaurar a decisão antecipatória. Há, penso, um erro de premissa no argumento de vocês. A conclusão, obviamente, está correta. A sentenca de improcedência, ressalvados eventuais capítulos acessórios, tem apenas conteúdo negativo (eficácia declaratória negativa: o autor não tem direito ao que pretende). Nesse caso, é de todo impróprio falar em efeito suspensivo. Este simplesmente é estranho ao caso. Só há de falar nele entendo, quando a decisão tem algum conteúdo positivo que possa ensejar sua efetivação (execução lato sensu). Vejam: o efeito suspensivo, que é da recorribilidade, tem o condão que a eficácia positiva da sentença possa vir a ser, de logo, realizada. Daí porque Barbosa Moreira, não sem razão, o denomina de efeito impeditivo. Numa prova, coloquei uma questão prática sobre o tema, a qual segue abaixo, e os alunos defenderam a necessidade de o juiz receber o apelo no duplo efeito com base na fundamentação de vocês. Estamos a defender algo não visto por boa parte da processualística brasileira, que, presa um falso paradigma, não consegue transpor seus dogmas".
  
     Recife, 13 de julho de 2011.


                                                         Roberto Campos Gouveia Filho

  


sábado, 23 de julho de 2011

COMO DETERMINAR A CAUSA DE PEDIR?

     Muito embora eu não mais queira lecionar as disciplinas relativas ao que se costuma denominar de processo de conhecimento, a análise de muitos dos temas nele presentes continuará sendo objeto de meus estudos. Meu divórcio é com o ensino da matéria, não com o estudo. Até porque, manterei, sem dúvida, minha postura crítica à construção de cunho estritamente racionalista feita pela doutrina processual moderna acerca da ideia de processo.

        Dito isso, volto ao tema da causa de pedir, até porque, bem pensadas as coisas, ele é um tema da Teoria Geral do Processo.

      Vou me restringir neste post, não a definir causa de pedir e, muito menos, discutir as teorias que rondam em torno dela, mas sim a explicar como, diante de um caso concreto, se deve fazer a determinação da causa de pedir, para fins, principalmente, de preenchimento do pressuposto presente no art. 282, III, CPC.

      Sempre disse em aula que, quando se está diante de uma demanda, se deve ter em mente, primeiramente, o pedido. Qual é a razão disso? Simples: o pedido, ao fim e ao cabo, é representativo do que realmente pretende o autor com o processo a ser por ele iniciado. É o que de fato importa. Pede-se, lembrem-se sempre, ao Estado, enquanto devedor da tutela jurídica, e não ao sujeito passivo da ação material exercida.

       Pois bem. Sabendo de antemão qual é o pedido, fica muito mais simples determinar a causa de pedir. Depois de analisar o tema por anos a fio, penso que descobri uma fórmula padrão que pode ser empregada em qualquer caso: se se pede algo ao Estado, é porque, mesmo que implicitamente, se afirma ter direito, no plano material, a esse algo. Esse direito, por ser elemento de uma relação jurídica, é componente da causa de pedir próxima da demanda (fundamento jurídico, na dicção do art. 282, III, CPC). A causa de pedir próxima é sempre uma relação jurídica. Ora, esta última (e os elementos que a compõem: direito-dever, pretensão- obrigação, ação e exceção) não surge do nada. Se aplicarmos corretamente a Teoria do Fato Jurídico ponteana, veremos que somente um fato jurídico pode acarretar algo no mundo jurídico. Somente um fato jurídico, em alguma de suas várias espécies, pode, no caso, gerar relações jurídicas. Sendo assim, se se afirma na inicial ter direito a algo, deve-se dizer, para fins do mesmo dispositivo legal, o que gerou esse direito, ou seja, qual é o fato jurídico que o deu ensejo. O fato jurídico é representado no processo pela causa de pedir remota. Esta é, pois, a processualização dele. Vejam que, como o fato jurídico sempre vem antes do direito, ele só pode ser considerado como causa de pedir remota, e não próxima. Remota vem antes de próxima, obviamente. 

        Eis, portanto, o esquema básico da causa de pedir.

       Um exemplo, sempre dado por mim em aula, talvez possa esclarecer melhor. Suponha-se que João, ao comprar um automóvel de Pedro, tenha sido enganado em virtude do dolo do vendedor (pelo fato de, por exemplo, este ter dito que o motor do veículo era orginal, quando, na verdade, fora recauchutado). Ciente de tal fato, João decide propor uma ação para anular da dita compra e venda. Seu pedido, por óbvio, é a anulação do negócio jurídico celebrado. Quem anula, frise-se, é o Estado. Ora, se o autor pede a anulação, é porque, mesmo implicitamente, ele afirma ter direito a isso, que, in casu, é o direito potestativo à anulação, componente, ao lado da pretensão à anulação e da ação anulatória (de força desconstitutiva), da causa de pedir próxima, pois. Diante disso, como determinar a causa de pedir remota? O que gerou tal direito para o autor? Muitos diriam (digo isso por experiência própria) o contrato de compra e venda. Absolutamente não. Seria de todo absurdo dizer que a eficácia do contrato de compra e venda produz o direito a anular o próprio contrato. O contrato de compra e venda, como cediço, gera, de um lado, o direito à entrega da coisa e, de outro, o direito ao recebimento do valor estipulado. Quem gera, na verdade, o direito à anulação (e, no mesmo jato, a pretensão à anulação e a ação anulatória) é o dolo invalidante, cujo suporte fático é formado pelo fato de o comprador ter realizado o negócio com uma falsa percepção da realidade por conta do dolo (= intenção) do vendedor. Certamente, o comprador não iria efetivar o negócio, ao menos nos moldes estabelecidos, se soubesse da real condição do motor. O dolo, in casu, é ato ilícito de eficácia anulatória do contrato de compra e venda. Por ser ato ilícito é fato jurídico, de modo que só pode vir a ser no processo causa de pedir remota.

     Obviamente, a depender do caso, pode-se ter de analisar outras coisas, como, por exemplo, qual é o fato jurídico gerador da pretensão e gerador da ação. Lembrem-se que a trinca: direito, pretensão e ação nem sempre surge no mesmo momento. É possível que cada um deles surja em momentos distintos. Nesse caso, teremos um fato jurídico para cada um, e isso no processo vai ensejar mais de uma causa de pedir remota. 

       Pode-se, portanto, perceber que quem vai me fornecer a causa de pedir é sempre o direito material, o qual no processo se transforma em res in iudicium deducta (relação jurídica deduzida no processo). Quanto maior for a complexidade dele, maior também será a complexidade da determinação da causa de pedir. Aquele que não atenta para isso, limitando-se apenas à análise da regras processuais, em especial as previstas no CPC, é apenas um bitolado e jamais pode se dizer, de verdade, um processualista. Não há processualista que não tenha minimamente noção de como funciona o direito material. Não é possível, igualmente, falar sobre direito processual sem uma noção mínima dos conceitos nos fornecidos pela Teoria Geral do Direito. Desafio alguém a mostrar o contrário. 

     No aguardo de oportunas considerações.

     Recife, 23 de julho de 2011.
  
     Roberto P. Campos Gouveia Filho   

terça-feira, 19 de julho de 2011

TEORIA DA AÇÃO MATERIAL E CONCURSOS PÚBLICOS


     O tema da ação material vem sendo  negligenciado, salvo honrosas exceções, nos últimos tempos. Pelos civilistas, por motivos alheios à minha compreensão. Talvez pelo fato de, para muitos deles, Pontes de Miranda, grande teórico do tema, não passar de uma peça de museu. Bom para ser citado; não para ser estudado, como já ouvi de alguns. Pelos processualistas, posso falar com mais propriedade, pelo fato de eles, modificando o sentido do termo ação, passarem a acreditar, a partir dos albores da Ciência Processual moderna, em não mais a ver razão de no plano material analisar tal tipo de situação jurídica. Do contrário, estar-se-ia a negar a própria cientificidade da Teoria do Processo.
     Ignorâncias e bobagens à parte, tive ciência há poucos meses de que o tema foi cobrado na prova oral do último concurso para a Magistratura paulista. Pela mensagem eletrônica me enviada pelo meu amigo Pedro Henrique Nogueira, autor de um importante livro sobre o tema, quem tinha noção de tal ideia se saiu muito bem na prova. 
     Isso é algo fenomenal, pois, além de resgatarmos a importância dos grandes temas da Teoria Geral do Direito no âmbito dos concursos públicos de primeiro nível, está-se por incutir na mente dos futuros magistrados a importância de eles aplicarem tal teoria para a solução de seus problemas. Particularmente, em toda minha breve história como operador do direito, primeiro no cargo de Assessor do TJPE e, agora, como advogado forense, nunca tive um problema em mãos para o qual a Teoria da Ação Material de Pontes de Miranda não me desse a resposta definitiva. Lembrem-se que ela dá ensejo ao problema da eficácia da sentença. Tema maior da Ciência Jurídica no meu modesto entender. 
     No aguardo de considerações, notadamente as de cunho crítico.


     Roberto P. Campos Gouveia Filho

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A PRETENSÃO E OS DIREITOS FORMATIVOS

     Um dos temas da Teoria Geral do Direito que vem sendo objeto de minhas inquietações (e, por que não, incompreensões) acadêmicas é o relativo ao problema da relação da pretensão e os direito formativos. Estes, como cediço, que na terminologia italiana, devida a Chiovenda, denominam-se de potestativos, tem duas características importantes: a) a primeira que não dependem de cooperação do sujeito passivo para sua realização (este fica em estado de sujeição àquele); b) a segunda que, quando realizado, o direito formativo altera o mundo jurídico (mundo ideal, criado pelo intelecto humano). 
     Pois bem. Pontes de Miranda, ao analisar a problemática das ações constitutivas, diversas vezes aborda a trinca: direito, pretensão e ação, no sentido de ela ser sempre presente. Será que há mesmo falar em pretensão para tais casos? Penso que no que tange às pretensões à abstenção não há dúvida. Mas vejam que estas não se relacionam diretamente com o direito potestativo, mas apenas servem a ele. Elas são acopladas a um direito prestacional (prestação de cunho negativo, à abstenção) que está em função do direito formativo. 
     Em relação ao direito formativo em si, não vejo como se falar em pretensão contra o sujeito passivo da relação jurídica, uma vez que, neles, não há prestação a ser exigida. A seguinte passagem de Pontes parece indicar isso: "Um dos escalrachos a serem arrancados da doutrina jurídica, nos países onde não se chegou a recepção de conceito nítido de direito formativo, é o da confusão entre pretensão contra o outorgante do direito formativo (pretensão que não existe, salvo declaratória) e direito formativo" (Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, t. 25, p. 200). 
     Penso já ter uma conclusão acerca do ponto, e ela, no meu entender, não é nenhuma novidade, pois Pontes, por certo de modo implícito, já a tinha. Vou lançá-la, em breve, aqui.


        Roberto P. Campos Gouveia Filho

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O PLANO DA EXISTÊNCIA DO RECURSO

      Depois de um longo período de reflexão acerca de minhas premissas, cheguei ao momento de continuar a sequência de textos ligada à aplicação da Teoria do Fato Jurídico ao ato jurídico recursal. Depois do primeiro post relativo ao direito processual ao recurso, passo a tratar agora do plano da existência do ato jurídico recursal.

     Como cediço, o ato jurídico de interposição do recurso (ao qual se pode dar a denominação, sem quaisquer inconvenientes técnicos, de demanda recursal) é o exercício do direito ao recurso. Nem todo exercício de uma situação jurídica é ato jurídico, pois nem sempre o exercício é relevante para o direito. É o que ocorre, por exemplo, quando o proprietário, valendo do poder de uso inerente ao domínio, planta uma árvore no terreno de seu imóvel. Todavia, quando do exercício da situação jurídica (muitas vezes do direito) surge algo que gere repercussão no mundo jurídico, só podemos estar diante de alguma espécie de fato jurídico como resultado de tal exercício. Trata-se, aqui, do cânone mor da teoria ponteana: somente um fato jurídico, em alguma de suas espécies, pode repercutir (= gerar efeito) no mundo jurídico.
      
        É o que ocorre com o exercício do direito ao recurso, a repercussão no mundo jurídico gerada por ele é enorme, haja vista os notórios efeitos dos recursos.

          Dito isso, qual seria a espécie de fato jurídico na qual o recurso se insere. Por certo, não é ele um ato-fato jurídico, muito menos um fato jurídico em sentido estrito. Nele, a vontade é totalmente relevante, sendo a declaração de vontade o elemento principal de seu suporte fático.

        Não é o momento, todavia, de continuar na taxionomia do ato jurídico recursal: saber se ele, dentro da classificação ponteana, constitui um ato jurídico em sentido estrito, um negócio jurídico ou, até, um ato misto. Isso é tema para outro post. O que importa é que, sendo um ato jurídico, o recurso é, a priori, hábil a passar pelos três planos fenomênicos: existência, validade e eficácia.   

         Passo, pois, a análise do plano da existência do ato jurídico recursal.

       Quando se pode falar na existência de um recurso? Quando a norma jurídica que prevê seu suporte fático incide, de modo que, da incidência, ele possa surgir? Tudo isso gira em torno do plano da existência do recurso. É nele que as respostas às questões acima hão de ser descobertas. Para tanto, tem-se de perquirir acerca da composição do suporte fático da norma que regula o recurso.

      Quando se recorre, tem-se em mira a impugnação de algo que, proferido no curso do procedimento, lhe seja contrário. Este algo é a decisão. Pode-se dizer, portanto, que só é possível recorrer de uma decisão. Contra um ato não decisório, pode-se contrapor de diversos modos, mas não recorrendo[1]. Obviamente, quando falo em decisão, estou a me referir ao conteúdo do ato, e não ao termo que, posto em seu instrumento, serve para o denominar.

       Desse modo, faz-se necessário que, contra uma decisão, alguém impulsione o feito, de modo a apresentar uma impugnação. Há, aqui, dois atos facilmente perceptíveis: o impulso e a impugnação. Impulso, pois o ato faz com que a marcha procedimental prossiga[2]; impugnação, porquanto, com o ato, há a insurgência contra o teor ou, no mínimo, o resultado prático da decisão.  

     Esse composto (ato de impulso procedimental e impugnação) é a manifestação de vontade, na modalidade declaração (manifestação clara, com proclamação, declarada) de vontade, cerne do suporte fático do ato jurídico recursal. Mas isso é apenas o básico. Outros elementos são necessários para a concreção de tal suporte fático.

         Isso, contudo, não é suficiente. Para a ocorrência de um recurso, é preciso que o ato de interposição seja dirigido a alguém. Recorre-se para alguém, e não para si próprio. O destinatário do ato de interposição deve ser, sem dúvida, um órgão dotado de investidura jurisdicional, pois, em nome da coerência do ordenamento jurídico, apenas um órgão jurisdicional tem o poder de rever a decisão de outro órgão jurisdicional. No plano da existência, é irrelevante, todavia, a competência desse órgão para a análise do recurso. Deve-se ter em mira apenas a investidura jurisdicional: o poder de re-julgar, e não a capacidade para o exercício válido dele.  
   
          Mas não é só. A impugnação deve partir de alguém: o recorrente, aquele que apresenta a demanda recursal. O recorrente, como cediço, se ainda não o for, transforma-se em parte. Para tanto, ele precisa ter capacidade de ser parte. O morto, o animal não podem recorrer, pois não a tem.

A capacidade de ser parte do recorrente e a investidura jurisdicional do órgão para quem o recurso é dirigido são elementos subjetivos do suporte fático do ato jurídico recursal. Na classificação ponteana, seguida pelo professor Marcos Bernardes de Mello, são considerados elementos completantes do núcleo. Sabe-se que, em tal classificação, o núcleo o suporte fático é composto de cerne e elementos completantes.     

Em conclusão, o suporte fático do ato jurídico recursal é composto de um ato de impugnação (manifestação de vontade) por alguém, dotado de capacidade de ser parte, contra uma decisão e dirigido a um órgão com investidura jurisdicional.

Os conhecidos pressupostos de admissibilidade do recurso, na classificação tradicionalíssima do professor José Carlos Barbosa Moreira: cabimento, legitimação, interesse, inexistência de fato extintivo ou impeditivo do direito ao recurso, tempestividade, regularidade formal e preparo não compõem o núcleo do suporte fático do ato jurídico recursal. Não tem a ver, portanto, com o plano da existência dele. São elementos complementares de tal núcleo, ora relativo à validade, ora relativos à eficácia do recurso.

Os planos da validade e da eficácia do ato jurídico recursal serão, como dito, temas de textos seguintes a serem publicados aqui. 

Recife, 11 de julho de 2011.

            Roberto Campos Gouveia Filho – Professor de Direito Processual Civil da UNICAP e Advogado militante


[1] Não se olvida, aqui, o problema grave, cada vez mais frequente no cotidiano forense, da ausência de decisão, como ocorre que o juiz que deixa para apreciar o pedido liminar para um momento procedimental posterior. Como seria a recorribilidade em tais casos? Em outro post, pretende abordá-lo.
[2] Não necessariamente a continuação da marcha procedimental pelo recurso dá-se no procedimento no qual foi proferida a decisão recorrida. Há recursos, como o agravo na forma instrumental contra as decisões de juízos de 1ª. instância que ocasionam o surgimento de um procedimento paralelo ao iniciado.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O DIREITO PROCESSUAL AO RECURSO E SEUS PRESSUPOSTOS

O presente post, ao contrário do último por mim lançado, não tem a finalidade de descrever um determinado entendimento de Pontes de Miranda. Venho aqui expor a minha percepção acerca do direito processual ao recurso, mais especificamente da composição do suporte fático do fato jurídico que o gera. Desse modo, embora a base deste ensaio seja a Teoria do Fato Jurídico ponteana, não há uma estrita fidelidade ao que Pontes de Miranda desenvolveu, em seus Comentários ao CPC (especialmente o t. 7 dos Comentários ao CPC vigente), sobre o tema em questão.
Além disso, devo dizer que o cerne deste texto não é analisar o ato jurídico recursal (recurso) e seus pressupostos, mas sim algo que deve antecedê-lo: o direito ao recurso. Alguns dos pressupostos deste último coincidem com os pressupostos do ato recursal. Em outro post, irei tratar a problemática acerca dos pressupostos necessários à existência, à validade e à eficácia do ato recursal. Por conta de minhas convicções sobre o tema, algumas delas adiante externadas, terei de ir de encontro à mais consagrada de todas classificações dos pressupostos recursais, de autoria do professor José Carlos Barbosa Moreira, proposta há mais de quarenta anos. Por ora, fico com o direito ao recurso.
           Dito isso, posso prosseguir.
           De plano, devo fazer uma advertência. O direito processual ao recurso, aqui tratado, não é um direito sob o prisma da estrutura lógica da norma jurídica, mais especificamente no consequente normativo (preceito, na linguagem utilizada pelo professor Marcos Bernardes de Mello[1]). Falo do direito como um tipo de situação jurídica, portanto como uma das possíveis consequências de um fato jurídico.
       Sendo assim, fica fácil compreender o fato de que, tal direito, não surge, na relação processual, do nada, por geração espontânea. É preciso, pois, que algo dê ensejo a ele. Este algo só pode ser, dentro da teoria ponteana, um fato jurídico. Passo, portanto, a analisar o fato jurídico recursal.
            Para se analisar o fato jurídico de modo científico, deve-se, tal como demonstrou Pontes de Miranda, observar o seu suporte fático, pois, como cediço, fato jurídico é exatamente o suporte fático juridicizado pela incidência normativa. Assim, de que é composto o suporte fático do fato jurídico recursal? 
         O primeiro elemento que devemos analisar é a decisão, porquanto só se pode falar em recurso se houver uma decisão, já que, antes de tudo, os recursos são meios de impugnação de decisões. A decisão (ou sentença em sentido amplo) é um dos atos jurídicos que compõem a cadeia procedimental. Não basta, no entanto, uma decisão para o surgimento do direito ao recurso. É preciso algo mais.
       Se estou a falar de direito como situação jurídica, tenho, obrigatoriamente, de falar no sujeito que o titulariza (ou pode vir a titularizar). Não há, por certo, um direito sem um ente (individual ou coletivo, conforme o caso) que o titularize. Quais são os entes, desse modo, que podem vir a ser titulares do direito ao recurso? De acordo com o art. 499, caput, CPC: a parte, o terceiro e o Ministério Público. Digo, de logo, que vou deixar a problemática em torno da titularidade do direito ao recurso deste último para outro post. Ainda preciso melhor analisar os pormenores do problema. Fico, por ora, com a parte e o terceiro.
        Os entes acima mencionados são aqueles que podem vir a ter o direito ao recurso, são os entes, pois, legitimados para o recurso. A legitimação recursal da parte, a meu ver, é singela: basta, para tanto, o simples estado de parte, ou seja, o fato de o sujeito figurar em algum dos pólos da relação processual. Friso que, nessa noção de parte, se inclui também o assistente simples, muito embora haja, como cediço, a polêmica doutrinária acerca da condição processual dele (por ora, digo, amparado em Fredie Didier Jr.[2], que o assistente simples é, conquanto auxiliar de outra, parte). Ressalto, por fim, que não é necessária, para a legitimação recursal da parte, a sua legitimação para causa. Não podem ser confundidos, em nenhuma hipótese, esses dois tipos de legitimação. Até porque, algo que hei de destrinchar em outro post, a legitimação para causa pode vir a ser o mérito recursal, algo impensável em se tratando de legitimação para o recurso. Já em relação ao terceiro, entendo que sua legitimação para causa é deveras importante para a configuração de sua legitimação recursal, pois, do contrário, ter-se-ia de dizer que qualquer sujeito de direito que estivesse fora da relação processual poderia, e até mesmo de modo eficaz, interpor um recurso contra uma decisão contida num processo totalmente estranho a ele. Penso que, por isso, para a legitimação recursal do terceiro, se faz imprescindível a sua legitimação para a causa. Assim, o terceiro só pode vir a ter legitimação recursal se for titular da relação material deduzida (causa, mérito do processo), ou, não sendo titular, tiver o poder de discuti-la em juízo (legitimação extraordinária autônoma), ou, ainda, for titular de alguma relação jurídica conexa com a causa, a qual faz com que ele possa vir a sofrer os efeitos reflexos da eficácia da sentença, podendo, por conta disso, intervir na relação processual na qualidade de assistente simples de alguma das partes.      
       Entretanto não basta, para o surgimento do direito ao recurso, o fato de alguém poder titularizá-lo (poder ter legitimação relativa a ele), de modo a insurgir-se contra uma decisão judicial. Tal legitimação, sem dúvida, reside na titularidade do direito ao recurso. Algo mais precisa se inserido nesse contexto para a devida concreção do suporte fático em análise. Para a devida concreção e, consequentemente, o surgimento do direito ao recurso, é imprescindível que a decisão a ser proferida no procedimento recursal possa acrescer algo à esfera jurídica daquele que recorre. É preciso, pois, ter interesse. Sem interesse não há a configuração do suporte fático recursal. É o interesse, portanto, mais um dos pressupostos do direito ao recurso.


        O interesse recursal aparece para a parte quando esta não obtém tudo aquilo que poderia obter, muito além da simples sucumbência, ao menos em seu sentido formal[3]. Por exemplo, não se pode dizer que, diante da sentença de extinção do processo sem análise do mérito, o réu tenha sucumbido. Mas, caso ele, valendo-se do art. 249, § 2°, CPC, tenha pleiteado de modo prioritário pela improcedência do pedido, não se pode dizer ter ele obtido tudo que poderia. Logo há interesse recursal para o réu.


      Já para o terceiro, que em hipótese alguma pode perder (é ilógico dizer que aquele que não participa pode perder), o interesse recursal surge a partir do momento que sua esfera jurídica, atingida pela eficácia da sentença, vem a ser minorada, ou seja, se ele tiver prejuízo. Quando o caput do art. 499, CPC, fala em terceiro prejudicado, ele está a regular não só a legitimação, como também o interesse recursal do terceiro.  


       Assim, concluo: a) para que a parte venha a titularizar o direito ao recurso é necessário que haja a prolação de uma decisão que lhe seja contrária. Tendo-se isso, está configurado o suporte fático do fato jurídico recursal para a parte, de modo que, juridicizado tal suporte fático, surge para ela o direito ao recurso; b) para o terceiro, faz-se necessário que, tendo ele algum tipo de legitimação para a causa nos moldes acima descritos, sua esfera jurídica seja atingida pela eficácia da decisão.
O direito ao recurso já nasce dotado de exigibilidade, de modo que a ele já vem acoplada uma pretensão: a pretensão processual ao recurso. É por isso que, surgido o direito ao recurso, seu titular já pode exercê-lo, vindo a insurgir-se contra a decisão.
Não se pode, de modo algum, confundir tal direito e sua respectiva pretensão com outros direitos processuais, também dotados de pretensão, que com ele têm algum tipo de relação: é o caso da pretensão processual ao conhecimento do recurso e da pretensão processual ao provimento dele. Tais pretensões surgem a partir de outros fatos jurídicos diversos do fato jurídico recursal (= gerador do direito ao recurso e da pretensão a ele vinculada). Em outro momento, irei abordá-las.
Alguns fatos jurídicos, além disso, podem ocorrer para impedir que o direito ao recurso surja. É o caso, dentre outros, da renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação, da desistência da demanda (= revogação da demanda), do reconhecimento procedência do pedido e da transação feita pelas partes. Tais fatos, por óbvio, são anteriores ao surgimento do fato jurídico recursal. A norma jurídica que os regula tem eficácia pré-excludente de juridicização[4]. Os fatos impeditivos do direito ao recurso não devem, por fim, ser colocados no mesmo plano da ausência dos elementos necessários à concreção do suporte fático do fato jurídico recursal. No primeiro caso, como dito, há a incidência de uma norma jurídica pré-excluindo a possibilidade de outra incidir: a reguladora do suporte fático do fato jurídico recursal; no segundo caso, tal suporte fático não se concretiza. A falta da legitimação recursal e do interesse no recurso se enquadram no segundo caso.
Por fim, o direito ao recurso e a pretensão a ele vinculada podem, obviamente, ser extintos. Os fatos jurídicos com tal eficácia são: a renúncia a tal direito (art. 502, CPC), a aceitação, expressa ou tácita, da decisão (art. 503, reconhecimento da justeza da decisão no primeiro caso; prática de ato contrário ao interesse recursal, no segundo), o exercício regular dele (gerador de uma preclusão, de tipo consumador) e o transcurso in albis do prazo para seu exercício (gerador de uma preclusão, de tipo temporal).
Enfim, são essas as minhas considerações acerca do tema. Espero resposta de todos, notadamente aquelas de cunho crítico.

Recife, 09 de março de 2011.
Roberto Campos Gouveia Filho – Professor de Direito Processual Civil da UNICAP


[1] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 66 e segs.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 13. ed. Salvador: JusPODIVM, 2011, v. 1, p. 361.
[3] Há autores (Flávio Cheim Jorge, por todos) que entendem haver uma sucumbência formal e outra material. Apenas a primeira é relativa à derrota da parte.
[4] Sobre tal tipo de eficácia da incidência normativa, ver, com todo proveito, MELLO, Marcos Bernardes de, op. cit., p. 90-91.