Apresentação

Este Blog, criado por dois advogados e professores de Direito Processual Civil, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (da UFAL) e Roberto Campos Gouveia Filho (da UNICAP), tem por finalidade precípua despertar a comunidade científica para o debate sobre a obra (não apenas, embora preponderantemente, jurídica) do mestre alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Todos são bem-vindos, sejam aqueles que seguem a obra, que a criticam ou, até mesmo, que a desconhecem.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O PLANO DA EXISTÊNCIA DO RECURSO

      Depois de um longo período de reflexão acerca de minhas premissas, cheguei ao momento de continuar a sequência de textos ligada à aplicação da Teoria do Fato Jurídico ao ato jurídico recursal. Depois do primeiro post relativo ao direito processual ao recurso, passo a tratar agora do plano da existência do ato jurídico recursal.

     Como cediço, o ato jurídico de interposição do recurso (ao qual se pode dar a denominação, sem quaisquer inconvenientes técnicos, de demanda recursal) é o exercício do direito ao recurso. Nem todo exercício de uma situação jurídica é ato jurídico, pois nem sempre o exercício é relevante para o direito. É o que ocorre, por exemplo, quando o proprietário, valendo do poder de uso inerente ao domínio, planta uma árvore no terreno de seu imóvel. Todavia, quando do exercício da situação jurídica (muitas vezes do direito) surge algo que gere repercussão no mundo jurídico, só podemos estar diante de alguma espécie de fato jurídico como resultado de tal exercício. Trata-se, aqui, do cânone mor da teoria ponteana: somente um fato jurídico, em alguma de suas espécies, pode repercutir (= gerar efeito) no mundo jurídico.
      
        É o que ocorre com o exercício do direito ao recurso, a repercussão no mundo jurídico gerada por ele é enorme, haja vista os notórios efeitos dos recursos.

          Dito isso, qual seria a espécie de fato jurídico na qual o recurso se insere. Por certo, não é ele um ato-fato jurídico, muito menos um fato jurídico em sentido estrito. Nele, a vontade é totalmente relevante, sendo a declaração de vontade o elemento principal de seu suporte fático.

        Não é o momento, todavia, de continuar na taxionomia do ato jurídico recursal: saber se ele, dentro da classificação ponteana, constitui um ato jurídico em sentido estrito, um negócio jurídico ou, até, um ato misto. Isso é tema para outro post. O que importa é que, sendo um ato jurídico, o recurso é, a priori, hábil a passar pelos três planos fenomênicos: existência, validade e eficácia.   

         Passo, pois, a análise do plano da existência do ato jurídico recursal.

       Quando se pode falar na existência de um recurso? Quando a norma jurídica que prevê seu suporte fático incide, de modo que, da incidência, ele possa surgir? Tudo isso gira em torno do plano da existência do recurso. É nele que as respostas às questões acima hão de ser descobertas. Para tanto, tem-se de perquirir acerca da composição do suporte fático da norma que regula o recurso.

      Quando se recorre, tem-se em mira a impugnação de algo que, proferido no curso do procedimento, lhe seja contrário. Este algo é a decisão. Pode-se dizer, portanto, que só é possível recorrer de uma decisão. Contra um ato não decisório, pode-se contrapor de diversos modos, mas não recorrendo[1]. Obviamente, quando falo em decisão, estou a me referir ao conteúdo do ato, e não ao termo que, posto em seu instrumento, serve para o denominar.

       Desse modo, faz-se necessário que, contra uma decisão, alguém impulsione o feito, de modo a apresentar uma impugnação. Há, aqui, dois atos facilmente perceptíveis: o impulso e a impugnação. Impulso, pois o ato faz com que a marcha procedimental prossiga[2]; impugnação, porquanto, com o ato, há a insurgência contra o teor ou, no mínimo, o resultado prático da decisão.  

     Esse composto (ato de impulso procedimental e impugnação) é a manifestação de vontade, na modalidade declaração (manifestação clara, com proclamação, declarada) de vontade, cerne do suporte fático do ato jurídico recursal. Mas isso é apenas o básico. Outros elementos são necessários para a concreção de tal suporte fático.

         Isso, contudo, não é suficiente. Para a ocorrência de um recurso, é preciso que o ato de interposição seja dirigido a alguém. Recorre-se para alguém, e não para si próprio. O destinatário do ato de interposição deve ser, sem dúvida, um órgão dotado de investidura jurisdicional, pois, em nome da coerência do ordenamento jurídico, apenas um órgão jurisdicional tem o poder de rever a decisão de outro órgão jurisdicional. No plano da existência, é irrelevante, todavia, a competência desse órgão para a análise do recurso. Deve-se ter em mira apenas a investidura jurisdicional: o poder de re-julgar, e não a capacidade para o exercício válido dele.  
   
          Mas não é só. A impugnação deve partir de alguém: o recorrente, aquele que apresenta a demanda recursal. O recorrente, como cediço, se ainda não o for, transforma-se em parte. Para tanto, ele precisa ter capacidade de ser parte. O morto, o animal não podem recorrer, pois não a tem.

A capacidade de ser parte do recorrente e a investidura jurisdicional do órgão para quem o recurso é dirigido são elementos subjetivos do suporte fático do ato jurídico recursal. Na classificação ponteana, seguida pelo professor Marcos Bernardes de Mello, são considerados elementos completantes do núcleo. Sabe-se que, em tal classificação, o núcleo o suporte fático é composto de cerne e elementos completantes.     

Em conclusão, o suporte fático do ato jurídico recursal é composto de um ato de impugnação (manifestação de vontade) por alguém, dotado de capacidade de ser parte, contra uma decisão e dirigido a um órgão com investidura jurisdicional.

Os conhecidos pressupostos de admissibilidade do recurso, na classificação tradicionalíssima do professor José Carlos Barbosa Moreira: cabimento, legitimação, interesse, inexistência de fato extintivo ou impeditivo do direito ao recurso, tempestividade, regularidade formal e preparo não compõem o núcleo do suporte fático do ato jurídico recursal. Não tem a ver, portanto, com o plano da existência dele. São elementos complementares de tal núcleo, ora relativo à validade, ora relativos à eficácia do recurso.

Os planos da validade e da eficácia do ato jurídico recursal serão, como dito, temas de textos seguintes a serem publicados aqui. 

Recife, 11 de julho de 2011.

            Roberto Campos Gouveia Filho – Professor de Direito Processual Civil da UNICAP e Advogado militante


[1] Não se olvida, aqui, o problema grave, cada vez mais frequente no cotidiano forense, da ausência de decisão, como ocorre que o juiz que deixa para apreciar o pedido liminar para um momento procedimental posterior. Como seria a recorribilidade em tais casos? Em outro post, pretende abordá-lo.
[2] Não necessariamente a continuação da marcha procedimental pelo recurso dá-se no procedimento no qual foi proferida a decisão recorrida. Há recursos, como o agravo na forma instrumental contra as decisões de juízos de 1ª. instância que ocasionam o surgimento de um procedimento paralelo ao iniciado.

Um comentário:

  1. Interessantíssima contribuição, Roberto. Esse problema tem grande alcance prático. Investigar se os requisitos de admissibilidade se situam no plano da validade ou eficácia significa, pelo menos, indagar sobre quando ocorre o trânsito em juglado, pois ao reconhecer inadmissível um recurso, a depender da causa de inadmissbilidade, o tribunal poderá estar dizendo (eficácia declaratória) que o ato de recorrer foi ineficaz, não impedindo, com isso, o trânsito em julgado (embora todo ato de recorrer produza, pelo menos, o efeito de obrigar o tribunal a se pronunciar, ainda que para declarar a intempestividade, falta de interesse etc). Abs.

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