Apresentação

Este Blog, criado por dois advogados e professores de Direito Processual Civil, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (da UFAL) e Roberto Campos Gouveia Filho (da UNICAP), tem por finalidade precípua despertar a comunidade científica para o debate sobre a obra (não apenas, embora preponderantemente, jurídica) do mestre alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Todos são bem-vindos, sejam aqueles que seguem a obra, que a criticam ou, até mesmo, que a desconhecem.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Por Uma Noção de Execução Forçada

O texto abaixo foi escrito para o grupo de discussão da Associação Norte e Nordeste dos Professores de Processo, da qual sou membro. Seu conteúdo é delimitação da execução forçada. Muitas discussões foram geradas. O tema é polêmico. Defendo, todavia, a ideia com argumentos contudentes. Espero críticas.

Ao contrário do que pensam alguns aqui do grupo (Fredie Didier Jr., acima de todos), meu conceito de execução forçada, o qual pude, dentro dos limites, tratar no artigo que publiquei na última coletânea da ANNEP, é restrito. Para mim, só há propriamente execução quando o Estado-juiz, substituindo o sujeito passivo, presta algo no lugar dele, transmutando, com isso, as esferas jurídicas das partes: algo deixa a esfera de um e passa à esfera do outro. O ato do Estado-juiz deve ser, pois, ato em substituição, e não ato originário. 

Na classificação ponteana, a qual, como sabem, entendo ser a mais racional, semântica e pragmaticamente, a chamada sentença executiva opera a própria execução forçada. Em alguns casos, como na sentença que julga procedente a ação de reintegração de posse, atos materiais hão de ser praticados, mas, tais atos, são apenas um braço da sentença que se estende ao mundo real. Tem-se, com eles, a concretização no plano real da operação promovida no plano da linguagem. Observem que, no exemplo, a executividade da sentença está no fato de que o Estado-juiz, ao determinar a retirada da coisa da posse do réu, o faz para entregar ao autor a coisa, entrega esta que deveria, no âmbito da relação jurídica processualizada (res in iudicium deducta), ser feita pelo réu. Ademais, temos sentenças executivas que dispensam, inclusive, atos materiais, como as sentença substitutivas de declaração de vontade não emitida do art. 466-A, CPC. 

Algo muito distinto se dá com as sentenças de força condenatória, pois estas, embora contenham executividade, não têm o condão de operar a transmutação dita acima. Elas constituem, tão-somente, o título que enseja a execução ou, mais especificamente, dão um dos pressupostos para a execução forçada, sem que, obviamente, a operem. Isso se dá tanto em relação às sentenças que, embora condenem de forma preponderante, dispensam a actio judicati, como o são as do art. 461-A, CPC, como em relação àquelas que, para serem efetivadas, necessitem da dita ação, como ocorre com as sentenças do art. 475-J, CPC. Em relação às primeiras, devo dizer, só há sentido no emprego delas em relação às obrigações para entrega de coisa referentes a créditos dos mais diversos, como aqueles que exsurgem de uma compra e venda ou de um locação. Para as relações jurídicas de entrega de coisa fundadas em direito real, na posse pura e simplesmente, e no acordo de transmissão desta última, qualquer ato atentador às pretensões a elas inerentes dá ensejo a ações executivas ou executivas reais, como denomina o professor Ovídio Baptista da Silva, isso ocorre com ações como a reivindicatória, a reintegratória de posse, a publiciana, a de imissão na posse, a de petição de herança, a de despejo, a de depósito e muitas outras. 

Nesse sentido, respondendo à pergunta que fiz a Rinaldo (Mouzalas) ao longo de sua arguição, as sentenças executivas não podem ser enquadradas como título executivo, pois elas já operam a execução forçada. São muito mais, pois, do que simples elementos para execução forçada como ocorre com as condenatórias. 

Repilo, pois, o viés executivo da chamada execução indireta, pois, no caso, o Estado-juiz não opera o ato de executar, agindo tão-somente para forçar a execução. Não são executivas, pois, ações como o arresto e o mandado de segurança, porquanto o ato do Estado-juiz seja um ato de ordenar que alguém faça algo, sem que ele possa fazê-lo em substituição. As sentenças mandamentais são aquelas que o Estado-juiz pratica algo (dá uma ordem) que somente ele pode fazer. Pensem no exemplo do "habeas corpus", a mais importante ação mandamental existente, somente um juiz pode, dentro do Estado Constitucional (não apenas por questões de direitos fundamentais, mas também, e principalmente, por motivos relativos à distribuição do poder estatal) pode ordenar a uma autoridade policial para que solte alguém ou deixe de prendê-lo. Observem que, por outro lado, o juiz, dentro dos poderes constitucionalmente delimitados, não pode praticar isso no lugar da autoridade policial. 

Aqui, fique claro, nenhuma executividade está em atos de ordenação (na sentença executiva tais atos existem, em maior ou menor grau, sem que nisso resida a executividade): a executividade está na referida transmutação das esferas jurídicas. As cominações, ademais, concretizadoras da chamada execução indireta são, em verdade, sentenças acessórias de cunho condenatório: cumpra sob pena de algo. Alguns autores, como Luiz Guilherme Marinoni, veem nelas a própria mandamentalidade, um grande equívoco, a meu ver. Por incrível que pareça há quem - talvez pelo fato de estar na moda as expressões mandamentalidade e executividade sentencial - atribua tal entendimento a Pontes de Miranda. Não me irrito pelo não estudo da obra do jurista alagoano, mas fico totalmente revoltado quando vejo a obra dela ser citada só para fins retóricos, numa retórica charlatã, uma verdadeira impostura intelectual, para ficarmos com Sokal e Bricmont. 

Rigorosamente, a sentença mandamental é auto-realizável, já que ao ordenar o Estado-juiz cumpre com seu dever. Não é por outro motivo que Pontes de Miranda a coloca como mais dictum do que factum, pois nela prepondera o dizer, e não o fazer. Outra coisa é o cumprimento da ordem, que, por não poder ser feito pelo Estado-juiz em substituição, não pode, só por isso, ser enquadrado como execução forçada. Vejam que, havendo cominação, das duas uma: ou há o cumprimento voluntário, e não se pode falar, obviamente, em execução, ou, na hipótese de descumprimento, opera-se a cominação e a execução será não da ordem em si, mas da sentença acessória que, como disse acima, tem força condenatória. 

Aos que defendem a natureza executiva da chamada "execução indireta" gostaria de obter uma resposta para o seguinte questionamento: a execução forçada está na emissão da ordem (mandamento) ou, conforme o caso, comando (condenação), no cumprimento deles, na cominação feita para o eventual descumprimento ou na execução da cominação operada em virtude deste último? 

Retoricamente, faço minhas respostas para tais perguntas:

a) no primeiro caso, a execução seria apenas um ato formal de emitir uma ordem ou comando. Nesse sentido, qualquer sentença condenatória, mandamental ou, até mesmo, declaratória já executaria, não havendo sentido na distinção, tão cara à Ciência Processual moderna, entre conhecimento e execução, entre dictum e factum. Percebam, o ato de condenar (e é importante frisar a condenação, já que muitos dos autores que defendem a execução indireta são refratários, consciente ou inconscientemente, à sentença mandamental, logo a invocação desta última  para o caso é praticamente irrelevante) já seria a própria execução;

b) no segundo caso, a distinção, necessária, entre cumprimento espontâneo e execução cairia por terra, notadamente se a sentença contivesse uma condenação. Nesse caso, na execução por quantia certa fundada em título extrajudicial o despacho (rectius: sentença condenatória provisória) de admissibilidade do art. 652, CPC, já seria a própria execução;

c) no terceiro caso, a execução residiria apenas no ato de cominar algo por um eventual descumprimento de uma ordem ou, conforme o caso, comando. Toda sentença que condenasse ou mandasse cominando sanção pelo descumprimento seria, ela própria, execução. Ou seja, aqui, a execução não é forma de realização do direito, mas sim apenas um ato que pode ensejar isso. Fazendo uma comparação, no âmbito das relações jurídicas obrigacionais "stricto sensu", o cumprimento da prestação não seria o adimplemento, mas sim o simples fato de o sujeito passivo ser instado a cumprir;

d) no último caso, a tese da executividade da "execução" indireta cai num vício lógico incontornável, já que a execução da cominação não é efetivação da ordem ou do comando, mas sim a própria execução direta da sentença condenatória acessória (cominação). Enfim, a "execução" indireta é tão execução quanto a outra, pois ela reside na execução (direta!) da cominação efetuada pelo descumprimento do comando ou da ordem. Maior petição de princípio não pode haver.

Por fim, numa total liberalidade acadêmica, criei a seguinte classificação, a qual transmito em aula. Temos um conjunto maio denominado de realização dos direitos. Nele, até mesmo os direitos formativos são colocados. Realização esta que, como se sabe, ocorre no mundo jurídico. Um subconjunto dele é a satisfação, a qual engloba os direitos prestacionais (o complementar do segundo em relação ao primeiro fica apenas com os direitos formativos). Um terceiro, que é subconjunto do segundo, é a execução forçada, a qual tem a ver apenas com a realização de direitos prestacionais por ato de substituição do Estado-juiz. Tem-se, pois: realização > satisfação > execução. 

Roberto P. Campos Gouveia Filho.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Primeiras Considerações Acerca da Nova Usucapião Familiar

Em conjunto com o professor da FDR-UFPE e UNICAP Roberto Paulino de Albuquerque Jr., escrevi, em julho do corrente ano, um breve arrazoado sobre alguns aspectos materiais e processuais da novel usucapião familiar, inscrita no art. 1.240-A, CC. O texto foi publicado na última Revista de Processo, a de n. 199.

Abaixo segue o inteiro teor dele.


      Em 16 de junho deste ano foi promulgada a Lei 12.424/2011, cuja finalidade principal foi alterar a Lei 11.977/2009, que trata do programa federal de habitação popular “Minha casa, minha vida.”
      Seu art. 9.º traz importante inovação, que consiste na criação de um novo suporte fático de usucapião, adicionando ao Código Civil o art. 1.240-A. Ao dispositivo em questão foi dado o seguinte texto:
“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1.º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 2.º (Vetado.).”
      O efeito da regra transcrita parece ser claro. Presentes seus requisitos, o cônjuge (ou companheiro:[1] seja a elipse doravante suposta) que permanece no imóvel adquirirá por usucapião a fração ideal que pertencia ao outro. Pode-se dizer que a norma consagra uma espécie de consolidação ou direito de acrescer, tornando-se o cônjuge remanescente proprietário exclusivo.
      Essa consolidação decorre, sem dúvida, de uma nova modalidade de usucapião, dada a aquisição do domínio por posse prolongada, modalidade esta que pode ser denominada de usucapião familiar.[2] [HFürst1] 
      Como se trata de usucapião, não é preciso que o cônjuge manifeste qualquer intenção de adquirir a meação do imóvel que pertence ao coproprietário – a aquisição decorre de ato-fato jurídico, em que a vontade é irrelevante, pois é abstraída pela norma jurídica. O suporte fático normativo dos “atos-fatos” jurídicos não tem, pois, a vontade como um de seus elementos. Basta, para sua concreção, apenas a mudança fática causada pela conduta (positiva ou negativa) humana. A vontade, nesse caso, se existir, não é juridicizada pela incidência, ficando restrita ao mundo fático.[3]
       Com a redução do prazo para dois anos de posse exclusiva depois da separação de fato, busca a regra privilegiar aquela que é a finalidade essencial de toda usucapião, a proteção da segurança jurídica.[4]
     Não se trata, portanto, de sanção ao cônjuge que deixa o lar, mas sim de uma forma de pôr fim ao condomínio, afastando o bem da partilha e regularizando a propriedade plena daquele que permaneceu no imóvel antes comum, não raro mantendo a guarda dos filhos.
     Os elementos necessários à configuração do suporte fático do art. 1.240-A do CC/2002 são os seguintes: (a) não ter o imóvel área superior a 250m², nem ser o usucapiente proprietário de outro imóvel urbano ou rural; (b) compropriedade do imóvel com o cônjuge; (c) posse exclusiva por dois anos, para moradia própria ou de sua família, contados do “abandono do lar” pelo cônjuge.
     A extensão e a ausência de outro imóvel vieram à regra por cópia do art. 183 da CF. Não parecem necessárias maiores digressões quanto a eles, ao menos não neste momento inicial, em que os requisitos (b) e (c) reclamam, sem dúvida, maior atenção da parte do intérprete.
    Quanto à letra (b), deve-se observar: não há usucapião bienal se o imóvel não pertencer a ambos os cônjuges.
     A finalidade da nova regra, como dito, é dar segurança ao status do coproprietário que possui o bem com exclusividade após a cessação da composse, retirando-o da partilha. Não pode o art. 1.240-A do CC/2002 ser alegado para acelerar, portanto, usucapião de imóvel de terceiro em que os cônjuges residam quando da separação.
    Não exige a norma, entretanto, que o imóvel tenha ingressado no condomínio por força da eficácia do regime de bens. Não é relevante que tenha o casal adquirido o imóvel por negócio gratuito ou oneroso, por título inter vivos ou mortis causa, ou mesmo que a aquisição se tenha dado antes do casamento ou união estável. Basta, para este fim, que quando da dissolução fossem ambos proprietários do bem.
    Por outro lado, dada a carga eficacial predominantemente declarativa da sentença de usucapião,[5] se os cônjuges já completaram o prazo para usucapir (de cinco, dez ou quinze anos) e não propuseram ainda a ação própria quando sobrevém a separação, passa a fluir o prazo bienal, pois já eram proprietários.
     Quanto ao “abandono” previsto no suporte fático, é preciso ter máximo cuidado.
     A infeliz e dúbia referência do legislador deve ser lida simplesmente como indicativa de separação de fato.
     A separação de fato, que mesmo depois da extinção da separação de direito pela Emenda 66/10 continua a existir e a produzir importantes efeitos jurídicos, como o da suspensão da eficácia do regime de bens,[6] passa a irradiar um novo efeito, que é o da contagem do prazo de usucapião bienal. E só.
    Abandono aqui não se deve entender como referência ao ato ilícito caracterizado pela infração do dever de vida em comum no domicílio conjugal (art. 1.566, II, do CC/2002). Salvo os deveres de mútua assistência e guarda, sustento e educação dos filhos, tem-se sustentado que os demais não são cogentes,[7] tendo sido há anos afastada de todo a função da culpa na dissolução do casamento.[8]
   Logo, não há por que duvidar de que o abandono previsto no art. 1.240-A do CC/2002 seja recepcionado como ato-fato lícito caducificante.[9] Dessa importante conclusão decorre a confirmação de que a usucapião familiar não corresponde a nenhum tipo de sanção para o cônjuge que se retira do lar conjugal. Pouco importa a aferição de culpa, quer para o deferimento do divórcio e apuração de seus efeitos, quer para a concessão da usucapião sobre a outra metade do imóvel de moradia. E neste sentido, o usucapiente pode, perfeitamente, ser o “culpado” à luz da teoria clássica do direito de família.
    Após enunciar os pressupostos da nova usucapião, cabe suscitar alguns questionamentos sobre o seu procedimento. 
     A que juízo compete processar a usucapião familiar? Embora se trate de dispositivo fadado à polêmica, não será possível aplicá-lo sem reconhecer a relação familiar, que se no casamento é formal e pressuposta, na união estável exige prova específica. Por outro lado, é preciso igualmente fazer prova da separação de fato, em qualquer dos dois casos. Ademais, o reconhecimento da usucapião no prazo bienal afeta diretamente a partilha, por afastar dela o bem cuja meação foi usucapida. Logo, parece razoável concluir que a competência pertença ao juízo apontado, na lei de organização judiciária do estado-membro ou do Distrito Federal, como competente para conhecer da dissolução do casamento ou união estável e da partilha de bens, evitando a remessa à vara cível de questões que lhe são estranhas.
     Por fim, não parece ser necessário, no específico caso da usucapião familiar, que o processo siga o procedimento especial da ação de usucapião, previsto nos arts. 941 a 945 do CPC.
Explica-se: o rito especial, com toda a sua complexidade, tem uma função particularmente clara, que é a de formalizar uma relação processual que se dá contra todos, para a declaração de que foi adquirido o direito real, cujo exercício se dá erga omnes.[10] A especialidade de tal procedimento está no edital convocatório dos réus hipotéticos, fixado no art. 942 do CPC. Trata-se de uma técnica de sumariedade de cunho pré-processual. Como, de acordo com o exposto acima, não há réus hipotéticos em tal ação, o procedimento especial não tem o menor sentido.
      Na nova modalidade de usucapião, este aspecto deixa de ter relevância. Se os cônjuges precisam ser titulares em conjunto do domínio sobre o bem, não há como ferir interesses de terceiros. Nem mesmo os confinantes poderão ser prejudicados, pois o pedido deve se restringir à declaração de aquisição da meação do cônjuge condômino no imóvel, nos estritos limites do direito previamente reconhecido. Por isso, o interesse em contestar a demanda pertence exclusivamente ao cônjuge que se retira do lar, sendo desnecessária a citação dos demais.
      Se por acaso os antigos coproprietários tiverem adquirido o bem por usucapião e, por qualquer motivo, não ter havido declaração judicial da propriedade, pode o cônjuge ou companheiro propor contra o outro a ação de usucapião, não para, obtendo a declaração judicial, criar a matrícula do imóvel ou alterar o registro, algo que seria inviável, mas sim para ver declarado que o imóvel não mais compõe, pela ocorrência da novel usucapião, a comunhão.
      Frise-se que, nesse caso, não seria possível a cumulação de ações – ação de usucapião contra todos (aquele em cujo nome o imóvel esteja registrado, se de fato existir, os confinantes e os outros réus hipotéticos) e ação de usucapião contra o cônjuge ou companheiro – pois o procedimento especial dos arts. 941 a 945 do CPC, seria incompatível com tal cumulação (óbice do art. 292, § 1.º, III, do CPC). Além disso, tal cumulação, se efetivada, seria do tipo sucessiva[11] e com uma pluralidade de sujeitos passivos incompatível com as regras vigentes do litisconsórcio, pois, na primeira ação cumulada, ambos os comunheiros seriam autores (ou, no mínimo, haveria a necessidade de citação do que não demandasse, na ratio do art. 47, parágrafo único, CPC) e, na segunda, um dos comunheiros haveria de ser réu, sem existir qualquer autorização legal para tanto.

Recife, 31 de outubro de 2011.

Roberto P. Campos Gouveia Filho.


[1] No contexto atual, não parece haver fundamento para afastar da incidência da regra do art. 1.240-A do CC/2002 os companheiros em união homoafetiva.
[2] A expressão deve-se aMarcos Ehrhardt Jr.: Ainda sobre o art. 1.240-A do CC, na busca de uma interpretação mais adequada: usucapião familiar? Texto gentilmente nos cedido pelo autor.
[3] Sobre a caracterização da usucapião como ato-fato jurídico, ver: Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. 11, p. 117-118; Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 142.
[4] Sobre a tutela da segurança na usucapião, consulte-se, por exemplo, Gambaro, Antonio; Morello, Ugo. Tratatto di diritti reali. Milano: Giuffrè, 2010. vol. 1, p. 873-874.
[5] Por todos, Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p. 147.
[6] Albuquerque Júnior, Roberto Paulino. O divórcio atual e sua repercussão no direito das sucessões. In: Ferraz, Carolina Valença et alii (orgs.). O novo divórcio no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 346-347.
[7] Lôbo, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 142.
[8] Confira-se Oliveira, Maria Rita de Holanda Silva. As causas legais da separação e a realidade social: estudo sócio-jurídico. In: Albuquerque, Fabíola Santos et alii. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodium, 2010. p. 183 e ss.
[9] Sobre os atos-fatos caducificantes, Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. Op. cit., p. 140-143. Confira-se Oliveira, Maria Rita de Holanda Silva. As causas legais da separação e a realidade social: estudo sócio-jurídico. In: Albuquerque, Fabíola Santos et alii. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 183 e ss.
[10] “Na ação de usucapião, são partes o autor (legitimado ativo) e todos. (...) O procedimento edital é pressuposto necessário da relação jurídica processual da ação de usucapião: somente por ele se pode completar a angularidade da relação jurídica processual: autor, Estado; Estado, todos interessados. A propriedade é direito com sujeito passivo total; as ações declarativas só podem ter eficácia sentencial entre as partes.” Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado das ações. São Paulo: Ed. RT, 1971. t. 2, p. 258-259.
[11] Sucessiva porquanto, para segunda ação de usucapião ser acolhida, é necessário que a primeira seja procedente. Em suma, o comunheiro só pode usucapir um bem do outro se, e somente se, ambos, anteriormente, tiverem-no usucapido de outrem.

 [HFürst1]Srs. Autores, por gentileza, verifiquem o link informado. Não conseguimos acessá-lo deste editorial. Grato.


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA: RAZÕES DE UMA DISCORDÂNCIA


     A nota abaixo é a transcrição literal de um posicionamento por mim tomado no grupo de discussões virtual do IBDP (Insituto Brasileiro de Direito Processual) - N/NE. Como ocorre na maioria dos casos, posicionei-me contrário ao modismo presente na Ciência do Processo. Como a maioria das opiniões lá eram favoráveis ao tema, mas, a meu ver, boa parte delas, eram despidas de maiores fundamentos teóricos, resolvi escrever uma mensagem eletrônica maior, cujo título é o mesmo desta nota. Vamos a ela.

      Prezados,

     Resolvi explicitar o porquê de minha convicção contra o problema da relativização. Seguem, abaixo, as razões:

      a) muitos dos problemas relacionados à coisa julgada, na verdade, nada tem a ver com ela. Por exemplo, o falso problema do art. 741, p. único, CPC, que, como bem analisou Beclaute, é referente à eficácia executiva da setença que pode ser encoberta pelo exercício por parte do executado de uma exceção gerada pela decisão do STF em controle abstrato de constitucionalidade. Em suma, temos, nesse caso, por expressa previsão legal, uma regra que, senão extingue, possibilita o tolhimento da eficácia executiva da sentença, algo que ocorre, mutatis mutandis, de há muito, com a prescrição da pretensão executiva (que exsurge da eficácia da sentença). Vejam que, se bem entendermos a distinção entre eficácia da sentença, imperatividade do ato estatal e coisa julgada, nos moldes feitos por Pontes de Miranda (obviamente, não ignoro a contribuição de Liebman para o tema, sua tese, todavia, é, no mínimo, incompleta, não só por não trabalhar com as cinco eficácias, mas também por emaranhar, ao não trabalhar com o conceito de ação material, os planos material, pré-processual e processual do direito), problemas como este em comento passam ao largo da coisa julgada;

      b) como bem disse Marinoni, num dos melhores livros dele, a coisa julgada não é objeto do discurso jurídico, como são outros conceitos como o de vida, liberdade, patrimônio, dignidade. Tais noções devem ser descobertas processualmente. A coisa julgada não, ela é pressupostos do discurso jurídico, é o que faz dele distinto de outros discursos como o da moral e o da política.  É óbvio que não estou a dizer que toda decisão judicial deve ser apta a gerar coisa julgada (minhas bases ovidianas bem demonstram isso), mas o mínimo de previsão dela é indispensável (premissa lógica) para a definição do discurso jurídico. Desse modo, a coisa julgada não pode ser objeto de ponderação, do tipo: coisa julgada x dignidade, coisa julgada x verdade real (sem adentrar na problemática em torno desta última, que, a meu ver, é infrutífera);

   c) não obstante, partindo da ideia de que a coisa julgada pode ser descoberta processualmente, cometeríamos um erro de método ao, em princípio, por de lado a coisa julgada em face de outros valores como o da verdade (norte do leading case). Não há ponderação feita em hipótese. Ou o legislador deixa margem para a ponderação no caso concreto ou não o faz. Penso, por exemplo, ainda com Marinoni, que a vedação do uso de meios probatórios ilícitos, no âmbito do processo penal, foi de toda completada pelo legislador;

     d) talvez o maior problema dentro da discussão do tema seja o relativo às premissas da TGD. Muitos do que escrevem sobre a relativização sequer têm noção dos três planos do fenômeno jurídico. Do tipo, dizer que a norma inconstitucional (e, pior, a decisão que nela se baseia), é inexistente. Maior abusrdo não pode existir. Esquecem, ou ignoram, por exemplo, que Marcelo Neves (a meu ver, o maior jurista brasileiro vivo), ainda nos albores de sua vida acadêmica, aplicando, de certo modo, a tese ponteana, definiu a norma inconstitucional como pertinente ao sistema (= existente) e eficaz (portanto, apta a incidir) até ser desfeita pela decretação de sua inconstitucionalidade. Façam uma coisa, perguntem as pessoas ligadas a vocês e estudiosas do direito constitucional se já leram este belo trabalho (Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. Saraiva, 1988).  Perguntem, do mesmo modo, se já leram o livro de Jorge Miranda Contributo à Teoria da Inconstitucionalidade, o qual trabalha com o problema como de inexistência jurídica. Garanto que em bom número o conhecimento da obra do jurista lusitano é maior. Um retrato de nossa Ciência Jurídica: o de fora é sempre melhor;

     e) ainda no tema, muitos autores, como Dinamarco, chegam ao absurdo de dizer que decisões injustas não podem ser consideradas. Ora, na ótica do direito positivo, o que seria uma decisão injusta senão aquela que é violadora das normas jurídicas? Chegam, até mesmo, ao absurdo de proclamar a inexistência das decisões;

    f) mas, a meu ver, o maior problema é: quem vai garantir a justeza da decisão relativizadora? Não há nada no sistema que o faça. A não ser, numa total inversão de valores, a própria coisa julgada. Parece que tal questionamento, lançado pelo  professor Ovídio Baptista da Silva, ainda não tem, a meu ver, resposta. Foi isso que destruiu a teoria de Francesco Carnelutti, pois, ao fim e ao cabo, pode não haver uma justa composição da lide, de modo que, por via oblíqua, ele acabava definindo a atividade jurisdicional como a que produz coisa julgada;

      g) por fim, como processualizar a ação material (mesmo, aqui, faço questão de ser fiel as minhas bases) de relativização? Caso a causa tenha chegado ao tribunal, o juízo de 1a. instância pode processá-la e jugá-la? É algo que precisa ser respondido.
  
    Quero dizer, como conclusão, que não sou contra a discussão, no âmbito da Política Jurislativa, da relativização da coisa julgada. Estamos, inclusive, num momento propício para tanto em virtude do Projeto do NCPC. Acho, ademais, que toda a problemática em torno da formação e do desfazimento da coisa julgada é de viés infraconstitucional. Não concordo, todavia, com a ideia de deixar para órgão jurisdicional a última palavra sobre o tema.
  
      No aguardo das considerações e, principalmente, das críticas de todos.

      Recife, 15 de abril de 2011.

                                                                Roberto P. Campos Gouveia Filho

PRECLUSÃO DE DIREITOS PRESTACIONAIS: O CASO DO DIREITO AO REMÉDIO PROCESSUAL DO MANDADO DE SEGURANÇA


        Como é de conhecimento de alguns, defendo que o direito ao remédios jurídicos processuais (mandado de segurança, por exemplo) e as pretensões a ele correspondentes são, tal como a pretensão à tutela jurídica, de natureza pré-processual. O plano pré-processual é, a meu ver, aquele que não é material, pois as situações jurídicas nele previstas não compõem, ao menos num primeiro momento, a res deducta. Não é processual, de outro modo, porquanto, antecedendo ao processo, seu conteúdo não diz respeito ao desenvolvimento válido e regular deste último.

        Sendo assim, os direitos aos remédios jurídicos processuais seriam prestacionais, no sentido que a eles correspondem deveres do Estado, ou seriam potestativos? Penso, por ora, na primeira hipótese. A pretensão, situação típíca dos primeiros, dá-se no poder de exigir do Estado a prestação jurisdicional pelo uso do remédio.

       Partindo dessa premissa, a tese de Agnelo Amorim Filho (exposta ainda na década de 60 e atualmente festejada atualmente), poderia ruir no ponto em que, por ela, se preconiza que apenas os direitos formativos poderiam decair (rectius: precluir). É o caso, por exemplo, do direito ao remédio processual específico do mandado de segurança, o qual, salvo mínimas exceções, preclui.

      Recife, 15 de abril de 2011.

                                                                        Roberto P. Campos Gouveia Filho

domingo, 14 de agosto de 2011

O PROBLEMA DO DITO EFEITO SUSPENSIVO DOS RECURSOS: QUESTÃO TRADICIONAL DE MINHAS PROVAS


    A cadeira de Direito Processual Civil III, relativa aos meios de impugnação às decisões e ao processo nos tribunais, sempre foi marcante em minha vida. A começar porque na graduação tive a oportunidade de pagá-la com o professor, e hoje amigo do peito, Alexandre Freire Pimentel. Em seguida, pelo fato de em tal momento os professores Fredie Didier Jr. e Leonardo Cunha, este, outro amigo do peito; aquele, ligado a mim por, dentre outras coisas, laços familiares, estavam por escrever um livro sobre o tema, que hoje é o v. 3 do Curso de Direito Processual Civil capitaneado por Fredie. À época passando uma temporada com Fredie, tive a oportunidade impar de participar das discussões entre ambos para a feitura do livro.

     Minha relação como professor da disciplina, todavia, nunca foi das melhores, sempre achei a cadeira menos interessante de todo o Direito Processual Civil, com exeção para os temas relativos aos recursos extraordinários e à ação rescisória. Hoje, estou praticamente afastado dela, algo que, espero, continue por um longo tempo. 

     Uma análise que sempre achei complicada na doutrina ordinária foi a relativa ao chamado efeito suspensivo do recurso. Para mim, salvo honrosas exceções, o tema sempre foi muito superficial. Explorei bastante o tema com meus alunos durante os quase quatro anos que lecionei a disciplina.

     Em minhas provas uma questão sempre foi tradicional. Embora o tema fosse sempre visto e ressaltado por mim em aula, sendo a questão praticamente mencionada nela, muitos alunos sempre se complicaram na prova. Como não vou mais lecionar a disciplina, posso publicá-la aqui: "João ingressou com uma demanda visando declarar não ser devedor de Pedro. Além disso, requereu, liminarmente, uma antecipação dos efeitos da tutela, a fim de que fosse sustado um protesto, fundado na dívida discutida, feito pelo réu. Logrou êxito em seu pleito liminar; tendo, todavia, seu pleito declaratório rejeitado. Contra a sentença, João interpôs recurso de apelação, o qual foi recebido pelo juízo apelado no efeito devolutivo. Não satisfeito, o apelante interpõe agravo de instrumento para o tribunal competente. Por ele, alega ter o juízo agravado cometido um grave erro de avaliação, pois deveria ter recebido (declarado) o apelo no duplo efeito, algo que, a seu ver, teria restaurado a ordem de sustação do protesto, objeto da decisão antecipatória. Do exposto, pergunta-se: à luz do direito positivo e das lições vistas em aula, agiu corretamente o juízo apelado?" Fundamente.        

     Muitos dos alunos que erraram a resposta baseavam-se em livros tradicionais. O citado livro de Fredie e Leornado deixa margem para a ideia clássica, que, a meu ver, é equivocada. Em colaboração, envei-nos uma mensagem eletrônica expondo as razões de minha divergência. Não é que eles pensassem de modo equivocado; apenas não estava claro no livro. A mensagem foi a seguinte: "No livro de vocês (p. 121 da última edição) consta algo que, a meu ver, deve ser revisto. Vocês falam que, se a sentença é de improcedência do pedido, uma eventual decisão antecipatória da tutela cessa, e o efeito suspensivo do apelo não tem o condão de restaurar a decisão antecipatória. Há, penso, um erro de premissa no argumento de vocês. A conclusão, obviamente, está correta. A sentenca de improcedência, ressalvados eventuais capítulos acessórios, tem apenas conteúdo negativo (eficácia declaratória negativa: o autor não tem direito ao que pretende). Nesse caso, é de todo impróprio falar em efeito suspensivo. Este simplesmente é estranho ao caso. Só há de falar nele entendo, quando a decisão tem algum conteúdo positivo que possa ensejar sua efetivação (execução lato sensu). Vejam: o efeito suspensivo, que é da recorribilidade, tem o condão que a eficácia positiva da sentença possa vir a ser, de logo, realizada. Daí porque Barbosa Moreira, não sem razão, o denomina de efeito impeditivo. Numa prova, coloquei uma questão prática sobre o tema, a qual segue abaixo, e os alunos defenderam a necessidade de o juiz receber o apelo no duplo efeito com base na fundamentação de vocês. Estamos a defender algo não visto por boa parte da processualística brasileira, que, presa um falso paradigma, não consegue transpor seus dogmas".
  
     Recife, 13 de julho de 2011.


                                                         Roberto Campos Gouveia Filho

  


sábado, 23 de julho de 2011

COMO DETERMINAR A CAUSA DE PEDIR?

     Muito embora eu não mais queira lecionar as disciplinas relativas ao que se costuma denominar de processo de conhecimento, a análise de muitos dos temas nele presentes continuará sendo objeto de meus estudos. Meu divórcio é com o ensino da matéria, não com o estudo. Até porque, manterei, sem dúvida, minha postura crítica à construção de cunho estritamente racionalista feita pela doutrina processual moderna acerca da ideia de processo.

        Dito isso, volto ao tema da causa de pedir, até porque, bem pensadas as coisas, ele é um tema da Teoria Geral do Processo.

      Vou me restringir neste post, não a definir causa de pedir e, muito menos, discutir as teorias que rondam em torno dela, mas sim a explicar como, diante de um caso concreto, se deve fazer a determinação da causa de pedir, para fins, principalmente, de preenchimento do pressuposto presente no art. 282, III, CPC.

      Sempre disse em aula que, quando se está diante de uma demanda, se deve ter em mente, primeiramente, o pedido. Qual é a razão disso? Simples: o pedido, ao fim e ao cabo, é representativo do que realmente pretende o autor com o processo a ser por ele iniciado. É o que de fato importa. Pede-se, lembrem-se sempre, ao Estado, enquanto devedor da tutela jurídica, e não ao sujeito passivo da ação material exercida.

       Pois bem. Sabendo de antemão qual é o pedido, fica muito mais simples determinar a causa de pedir. Depois de analisar o tema por anos a fio, penso que descobri uma fórmula padrão que pode ser empregada em qualquer caso: se se pede algo ao Estado, é porque, mesmo que implicitamente, se afirma ter direito, no plano material, a esse algo. Esse direito, por ser elemento de uma relação jurídica, é componente da causa de pedir próxima da demanda (fundamento jurídico, na dicção do art. 282, III, CPC). A causa de pedir próxima é sempre uma relação jurídica. Ora, esta última (e os elementos que a compõem: direito-dever, pretensão- obrigação, ação e exceção) não surge do nada. Se aplicarmos corretamente a Teoria do Fato Jurídico ponteana, veremos que somente um fato jurídico pode acarretar algo no mundo jurídico. Somente um fato jurídico, em alguma de suas várias espécies, pode, no caso, gerar relações jurídicas. Sendo assim, se se afirma na inicial ter direito a algo, deve-se dizer, para fins do mesmo dispositivo legal, o que gerou esse direito, ou seja, qual é o fato jurídico que o deu ensejo. O fato jurídico é representado no processo pela causa de pedir remota. Esta é, pois, a processualização dele. Vejam que, como o fato jurídico sempre vem antes do direito, ele só pode ser considerado como causa de pedir remota, e não próxima. Remota vem antes de próxima, obviamente. 

        Eis, portanto, o esquema básico da causa de pedir.

       Um exemplo, sempre dado por mim em aula, talvez possa esclarecer melhor. Suponha-se que João, ao comprar um automóvel de Pedro, tenha sido enganado em virtude do dolo do vendedor (pelo fato de, por exemplo, este ter dito que o motor do veículo era orginal, quando, na verdade, fora recauchutado). Ciente de tal fato, João decide propor uma ação para anular da dita compra e venda. Seu pedido, por óbvio, é a anulação do negócio jurídico celebrado. Quem anula, frise-se, é o Estado. Ora, se o autor pede a anulação, é porque, mesmo implicitamente, ele afirma ter direito a isso, que, in casu, é o direito potestativo à anulação, componente, ao lado da pretensão à anulação e da ação anulatória (de força desconstitutiva), da causa de pedir próxima, pois. Diante disso, como determinar a causa de pedir remota? O que gerou tal direito para o autor? Muitos diriam (digo isso por experiência própria) o contrato de compra e venda. Absolutamente não. Seria de todo absurdo dizer que a eficácia do contrato de compra e venda produz o direito a anular o próprio contrato. O contrato de compra e venda, como cediço, gera, de um lado, o direito à entrega da coisa e, de outro, o direito ao recebimento do valor estipulado. Quem gera, na verdade, o direito à anulação (e, no mesmo jato, a pretensão à anulação e a ação anulatória) é o dolo invalidante, cujo suporte fático é formado pelo fato de o comprador ter realizado o negócio com uma falsa percepção da realidade por conta do dolo (= intenção) do vendedor. Certamente, o comprador não iria efetivar o negócio, ao menos nos moldes estabelecidos, se soubesse da real condição do motor. O dolo, in casu, é ato ilícito de eficácia anulatória do contrato de compra e venda. Por ser ato ilícito é fato jurídico, de modo que só pode vir a ser no processo causa de pedir remota.

     Obviamente, a depender do caso, pode-se ter de analisar outras coisas, como, por exemplo, qual é o fato jurídico gerador da pretensão e gerador da ação. Lembrem-se que a trinca: direito, pretensão e ação nem sempre surge no mesmo momento. É possível que cada um deles surja em momentos distintos. Nesse caso, teremos um fato jurídico para cada um, e isso no processo vai ensejar mais de uma causa de pedir remota. 

       Pode-se, portanto, perceber que quem vai me fornecer a causa de pedir é sempre o direito material, o qual no processo se transforma em res in iudicium deducta (relação jurídica deduzida no processo). Quanto maior for a complexidade dele, maior também será a complexidade da determinação da causa de pedir. Aquele que não atenta para isso, limitando-se apenas à análise da regras processuais, em especial as previstas no CPC, é apenas um bitolado e jamais pode se dizer, de verdade, um processualista. Não há processualista que não tenha minimamente noção de como funciona o direito material. Não é possível, igualmente, falar sobre direito processual sem uma noção mínima dos conceitos nos fornecidos pela Teoria Geral do Direito. Desafio alguém a mostrar o contrário. 

     No aguardo de oportunas considerações.

     Recife, 23 de julho de 2011.
  
     Roberto P. Campos Gouveia Filho   

terça-feira, 19 de julho de 2011

TEORIA DA AÇÃO MATERIAL E CONCURSOS PÚBLICOS


     O tema da ação material vem sendo  negligenciado, salvo honrosas exceções, nos últimos tempos. Pelos civilistas, por motivos alheios à minha compreensão. Talvez pelo fato de, para muitos deles, Pontes de Miranda, grande teórico do tema, não passar de uma peça de museu. Bom para ser citado; não para ser estudado, como já ouvi de alguns. Pelos processualistas, posso falar com mais propriedade, pelo fato de eles, modificando o sentido do termo ação, passarem a acreditar, a partir dos albores da Ciência Processual moderna, em não mais a ver razão de no plano material analisar tal tipo de situação jurídica. Do contrário, estar-se-ia a negar a própria cientificidade da Teoria do Processo.
     Ignorâncias e bobagens à parte, tive ciência há poucos meses de que o tema foi cobrado na prova oral do último concurso para a Magistratura paulista. Pela mensagem eletrônica me enviada pelo meu amigo Pedro Henrique Nogueira, autor de um importante livro sobre o tema, quem tinha noção de tal ideia se saiu muito bem na prova. 
     Isso é algo fenomenal, pois, além de resgatarmos a importância dos grandes temas da Teoria Geral do Direito no âmbito dos concursos públicos de primeiro nível, está-se por incutir na mente dos futuros magistrados a importância de eles aplicarem tal teoria para a solução de seus problemas. Particularmente, em toda minha breve história como operador do direito, primeiro no cargo de Assessor do TJPE e, agora, como advogado forense, nunca tive um problema em mãos para o qual a Teoria da Ação Material de Pontes de Miranda não me desse a resposta definitiva. Lembrem-se que ela dá ensejo ao problema da eficácia da sentença. Tema maior da Ciência Jurídica no meu modesto entender. 
     No aguardo de considerações, notadamente as de cunho crítico.


     Roberto P. Campos Gouveia Filho