Apresentação

Este Blog, criado por dois advogados e professores de Direito Processual Civil, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (da UFAL) e Roberto Campos Gouveia Filho (da UNICAP), tem por finalidade precípua despertar a comunidade científica para o debate sobre a obra (não apenas, embora preponderantemente, jurídica) do mestre alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Todos são bem-vindos, sejam aqueles que seguem a obra, que a criticam ou, até mesmo, que a desconhecem.

sábado, 23 de julho de 2011

COMO DETERMINAR A CAUSA DE PEDIR?

     Muito embora eu não mais queira lecionar as disciplinas relativas ao que se costuma denominar de processo de conhecimento, a análise de muitos dos temas nele presentes continuará sendo objeto de meus estudos. Meu divórcio é com o ensino da matéria, não com o estudo. Até porque, manterei, sem dúvida, minha postura crítica à construção de cunho estritamente racionalista feita pela doutrina processual moderna acerca da ideia de processo.

        Dito isso, volto ao tema da causa de pedir, até porque, bem pensadas as coisas, ele é um tema da Teoria Geral do Processo.

      Vou me restringir neste post, não a definir causa de pedir e, muito menos, discutir as teorias que rondam em torno dela, mas sim a explicar como, diante de um caso concreto, se deve fazer a determinação da causa de pedir, para fins, principalmente, de preenchimento do pressuposto presente no art. 282, III, CPC.

      Sempre disse em aula que, quando se está diante de uma demanda, se deve ter em mente, primeiramente, o pedido. Qual é a razão disso? Simples: o pedido, ao fim e ao cabo, é representativo do que realmente pretende o autor com o processo a ser por ele iniciado. É o que de fato importa. Pede-se, lembrem-se sempre, ao Estado, enquanto devedor da tutela jurídica, e não ao sujeito passivo da ação material exercida.

       Pois bem. Sabendo de antemão qual é o pedido, fica muito mais simples determinar a causa de pedir. Depois de analisar o tema por anos a fio, penso que descobri uma fórmula padrão que pode ser empregada em qualquer caso: se se pede algo ao Estado, é porque, mesmo que implicitamente, se afirma ter direito, no plano material, a esse algo. Esse direito, por ser elemento de uma relação jurídica, é componente da causa de pedir próxima da demanda (fundamento jurídico, na dicção do art. 282, III, CPC). A causa de pedir próxima é sempre uma relação jurídica. Ora, esta última (e os elementos que a compõem: direito-dever, pretensão- obrigação, ação e exceção) não surge do nada. Se aplicarmos corretamente a Teoria do Fato Jurídico ponteana, veremos que somente um fato jurídico pode acarretar algo no mundo jurídico. Somente um fato jurídico, em alguma de suas várias espécies, pode, no caso, gerar relações jurídicas. Sendo assim, se se afirma na inicial ter direito a algo, deve-se dizer, para fins do mesmo dispositivo legal, o que gerou esse direito, ou seja, qual é o fato jurídico que o deu ensejo. O fato jurídico é representado no processo pela causa de pedir remota. Esta é, pois, a processualização dele. Vejam que, como o fato jurídico sempre vem antes do direito, ele só pode ser considerado como causa de pedir remota, e não próxima. Remota vem antes de próxima, obviamente. 

        Eis, portanto, o esquema básico da causa de pedir.

       Um exemplo, sempre dado por mim em aula, talvez possa esclarecer melhor. Suponha-se que João, ao comprar um automóvel de Pedro, tenha sido enganado em virtude do dolo do vendedor (pelo fato de, por exemplo, este ter dito que o motor do veículo era orginal, quando, na verdade, fora recauchutado). Ciente de tal fato, João decide propor uma ação para anular da dita compra e venda. Seu pedido, por óbvio, é a anulação do negócio jurídico celebrado. Quem anula, frise-se, é o Estado. Ora, se o autor pede a anulação, é porque, mesmo implicitamente, ele afirma ter direito a isso, que, in casu, é o direito potestativo à anulação, componente, ao lado da pretensão à anulação e da ação anulatória (de força desconstitutiva), da causa de pedir próxima, pois. Diante disso, como determinar a causa de pedir remota? O que gerou tal direito para o autor? Muitos diriam (digo isso por experiência própria) o contrato de compra e venda. Absolutamente não. Seria de todo absurdo dizer que a eficácia do contrato de compra e venda produz o direito a anular o próprio contrato. O contrato de compra e venda, como cediço, gera, de um lado, o direito à entrega da coisa e, de outro, o direito ao recebimento do valor estipulado. Quem gera, na verdade, o direito à anulação (e, no mesmo jato, a pretensão à anulação e a ação anulatória) é o dolo invalidante, cujo suporte fático é formado pelo fato de o comprador ter realizado o negócio com uma falsa percepção da realidade por conta do dolo (= intenção) do vendedor. Certamente, o comprador não iria efetivar o negócio, ao menos nos moldes estabelecidos, se soubesse da real condição do motor. O dolo, in casu, é ato ilícito de eficácia anulatória do contrato de compra e venda. Por ser ato ilícito é fato jurídico, de modo que só pode vir a ser no processo causa de pedir remota.

     Obviamente, a depender do caso, pode-se ter de analisar outras coisas, como, por exemplo, qual é o fato jurídico gerador da pretensão e gerador da ação. Lembrem-se que a trinca: direito, pretensão e ação nem sempre surge no mesmo momento. É possível que cada um deles surja em momentos distintos. Nesse caso, teremos um fato jurídico para cada um, e isso no processo vai ensejar mais de uma causa de pedir remota. 

       Pode-se, portanto, perceber que quem vai me fornecer a causa de pedir é sempre o direito material, o qual no processo se transforma em res in iudicium deducta (relação jurídica deduzida no processo). Quanto maior for a complexidade dele, maior também será a complexidade da determinação da causa de pedir. Aquele que não atenta para isso, limitando-se apenas à análise da regras processuais, em especial as previstas no CPC, é apenas um bitolado e jamais pode se dizer, de verdade, um processualista. Não há processualista que não tenha minimamente noção de como funciona o direito material. Não é possível, igualmente, falar sobre direito processual sem uma noção mínima dos conceitos nos fornecidos pela Teoria Geral do Direito. Desafio alguém a mostrar o contrário. 

     No aguardo de oportunas considerações.

     Recife, 23 de julho de 2011.
  
     Roberto P. Campos Gouveia Filho   

7 comentários:

  1. Muito interessante e didática a explicação; esse post será leitura obrigatória para meus alunos. Só não concordo com a inversão terminológica na causa de pedir; para mim, a próxima continua, segundo a maior parte da doutrina tradicional, a servir para desingr a relação jurídica, enquanto a remota, o fato jurídico. Abs.

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  2. Caro Roberto,

    Realmente é inconcebível estudar processo dissociado do direito material, é como estudar música sem saber tocar algum instrumento(METÁFORA UTILIZADA POR MIM QUANDO MINISTRAVA TGP:INSTRUMENTO=PROCESSO/MÚSICA=DIR.MATERIAL) e tudo se resume na expressão TUTELA JURISDICIONAL.

    No artigo PROCESSO CIVIL CONTEMPORANEO que publiquei ano passado vc encontra aqui:

    (http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/O%20PROCESSO%20CIVIL%20CONTEMPORANEO%20-%20ASPECTOS%20CONCEITUAIS.pdf)

    Faço remissão a algumas passagens:
    "À época do Estado liberal o direito de ação era visto de forma restrita, pois servia, apenas como direito de pedir à Jurisdição a realização do direito material não adimplido.
    Vivia-se um momento de neutralidade da ciência processual, e de plena dissociação do direito material. Esse distanciamento entre o direito processual e o direito material possibilitou o reconhecimento do direito processual enquanto ciência autônoma ao tempo que demonstrou o quão ineficaz é o processo – meio, apartado do direito material – fim, pois, a inter-relação simbiótica entre ambos mostra-se como a fórmula mais adequada para a promoção da justiça."
    (...)"Afinal, é a investigação do caso concreto que possibilita a busca no direito processual da forma mais adequada para o tratamento do direito material correspondente."(...)"Ora, se devemos ter uma Constituição efetiva, também devemos ter toda uma legislação infraconstitucional também efetiva, afinal, sempre é bom lembrar que a Constituição Federal serve como um filtro axiológico pelo qual todo o ordenamento deve se submeter, nestes termos, se devemos conceber o direito processual sob o enfoque do direito material e possibilitar a efetiva tutela jurisdicional, é cediço que devam ser criados procedimentos técnicos processuais que concretizem a tutela do direito material ameaçado ou propriamente violado."(...)"O princípio da adequação, direcionado ao legislador, tem como razão a capacidade de promover criação legislativa (procedimento) que se amolde às particularidades do direito material que se pretenda defender em juízo de forma efetiva e/ou sob os auspícios de uma tutela de urgência"(...)"Na verdade, leciona Luiz Guilherme Marinoni, mais do que definir as necessidades do caso e explicar o motivo pelo qual escolheu a técnica processual utilizada, o juiz deve estabelecer uma relação racional entre as necessidades do caso concreto, o significado da tutela jurisdicional no plano substancial (que nada mais é do que a expressão da tutela prometida pelo direito material, ou seja, a tutela inibitória etc.) e a técnica processual"(...)

    Dentre outras...
    Corroborando, realmente a teoria ponteana não deixa ninguem na mão.
    Grande abraço!

    Danilo N. Cruz
    http://piauijuridico.blogspot.com/

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  3. Excepcional lição Roberto!

    Queria destacar apenas um ponto. Segundo Barbosa Moreira e, se a memória não me falha, a causa de pedir remota seria composta por um fato fundante e um fato contrário. Aquele seria o que gera o direito material de origem, enquanto que o segundo seria o ato do réu (como o dolo invalidante) que faz surgir (ainda que indiretamente) a pretensão à tutela jurídica.

    Assim, acho que é sempre salutar destacar na causa de pedir remota fato e relação jurídica que antecederam ao ilícito invanlidante (reportando-me ao exemplo do texto), isto é: o negócio de venda e compra, uma vez que foi no bojo desse fenômeno que ocorreu o ilícito e suas situações consectárias, as quais, por sua vez desaguariam na pretensão à tutela jurídica e no exercício desta ("ação").

    Cordialmente,
    Augusto Diniz

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  4. PRIMEIRAS LINHAS
    A princípio devo confessar que tenho que estudar +, pesquisar +, focar + para compreender, com maior amplitude, as comparações/propostas/conceitos destacados pelos grandes Mestres aqui presentes. Sugiro a mim mesma iniciar com as leituras deste blog como um instrumento complementar a análise da conjuntura processual já conhecida, porém nem tanto absorvida. O texto principal somado aos comentários adicionais eleva a ânsia do conhecimento e aguça a intrínseca curiosidade rudimentar; a primeira dela é a real compreensão do 'porquê' dos PEDIDOS, nas iniciais, necessariamente serem elencados ao fim, se poderiam ser justificados logo em seguida...por sua causa remota e próxima?! Não zombem, sei que falei bobagem...é que vejo tanta gente lendo a Petição de trás para frente...Valeu prof. Acompanharei.

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  5. Realmente não faria diferença se o pedido viesse primeiro e a justificação depois, e é perfeitamente compreensível que se leia a petição de trás para frente. Apenas acho que o costume existe porque na verdade o pedido não deixaria de ser consequência dos fatos jurídicos que ensejaram os direitos que o sustentam. Ainda que o pedido viesse primeiro, o raciocínio de quem julgasse teria que "voltar" até as causas para avaliar a procedência do pedido.

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  6. Nossa, sua explicação é extremamente didática! Muito obrigada por compartilhar esses conceitos tão importantes!

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  7. Digitarei: dos fatos = causa remota
    do direito= causa próxima
    Compreensivel?

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