Muito embora eu não mais queira lecionar as disciplinas relativas ao que se costuma denominar de processo de conhecimento, a análise de muitos dos temas nele presentes continuará sendo objeto de meus estudos. Meu divórcio é com o ensino da matéria, não com o estudo. Até porque, manterei, sem dúvida, minha postura crítica à construção de cunho estritamente racionalista feita pela doutrina processual moderna acerca da ideia de processo.
Dito isso, volto ao tema da causa de pedir, até porque, bem pensadas as coisas, ele é um tema da Teoria Geral do Processo.
Vou me restringir neste post, não a definir causa de pedir e, muito menos, discutir as teorias que rondam em torno dela, mas sim a explicar como, diante de um caso concreto, se deve fazer a determinação da causa de pedir, para fins, principalmente, de preenchimento do pressuposto presente no art. 282, III, CPC.
Sempre disse em aula que, quando se está diante de uma demanda, se deve ter em mente, primeiramente, o pedido. Qual é a razão disso? Simples: o pedido, ao fim e ao cabo, é representativo do que realmente pretende o autor com o processo a ser por ele iniciado. É o que de fato importa. Pede-se, lembrem-se sempre, ao Estado, enquanto devedor da tutela jurídica, e não ao sujeito passivo da ação material exercida.
Pois bem. Sabendo de antemão qual é o pedido, fica muito mais simples determinar a causa de pedir. Depois de analisar o tema por anos a fio, penso que descobri uma fórmula padrão que pode ser empregada em qualquer caso: se se pede algo ao Estado, é porque, mesmo que implicitamente, se afirma ter direito, no plano material, a esse algo. Esse direito, por ser elemento de uma relação jurídica, é componente da causa de pedir próxima da demanda (fundamento jurídico, na dicção do art. 282, III, CPC). A causa de pedir próxima é sempre uma relação jurídica. Ora, esta última (e os elementos que a compõem: direito-dever, pretensão- obrigação, ação e exceção) não surge do nada. Se aplicarmos corretamente a Teoria do Fato Jurídico ponteana, veremos que somente um fato jurídico pode acarretar algo no mundo jurídico. Somente um fato jurídico, em alguma de suas várias espécies, pode, no caso, gerar relações jurídicas. Sendo assim, se se afirma na inicial ter direito a algo, deve-se dizer, para fins do mesmo dispositivo legal, o que gerou esse direito, ou seja, qual é o fato jurídico que o deu ensejo. O fato jurídico é representado no processo pela causa de pedir remota. Esta é, pois, a processualização dele. Vejam que, como o fato jurídico sempre vem antes do direito, ele só pode ser considerado como causa de pedir remota, e não próxima. Remota vem antes de próxima, obviamente.
Eis, portanto, o esquema básico da causa de pedir.
Um exemplo, sempre dado por mim em aula, talvez possa esclarecer melhor. Suponha-se que João, ao comprar um automóvel de Pedro, tenha sido enganado em virtude do dolo do vendedor (pelo fato de, por exemplo, este ter dito que o motor do veículo era orginal, quando, na verdade, fora recauchutado). Ciente de tal fato, João decide propor uma ação para anular da dita compra e venda. Seu pedido, por óbvio, é a anulação do negócio jurídico celebrado. Quem anula, frise-se, é o Estado. Ora, se o autor pede a anulação, é porque, mesmo implicitamente, ele afirma ter direito a isso, que, in casu, é o direito potestativo à anulação, componente, ao lado da pretensão à anulação e da ação anulatória (de força desconstitutiva), da causa de pedir próxima, pois. Diante disso, como determinar a causa de pedir remota? O que gerou tal direito para o autor? Muitos diriam (digo isso por experiência própria) o contrato de compra e venda. Absolutamente não. Seria de todo absurdo dizer que a eficácia do contrato de compra e venda produz o direito a anular o próprio contrato. O contrato de compra e venda, como cediço, gera, de um lado, o direito à entrega da coisa e, de outro, o direito ao recebimento do valor estipulado. Quem gera, na verdade, o direito à anulação (e, no mesmo jato, a pretensão à anulação e a ação anulatória) é o dolo invalidante, cujo suporte fático é formado pelo fato de o comprador ter realizado o negócio com uma falsa percepção da realidade por conta do dolo (= intenção) do vendedor. Certamente, o comprador não iria efetivar o negócio, ao menos nos moldes estabelecidos, se soubesse da real condição do motor. O dolo, in casu, é ato ilícito de eficácia anulatória do contrato de compra e venda. Por ser ato ilícito é fato jurídico, de modo que só pode vir a ser no processo causa de pedir remota.
Obviamente, a depender do caso, pode-se ter de analisar outras coisas, como, por exemplo, qual é o fato jurídico gerador da pretensão e gerador da ação. Lembrem-se que a trinca: direito, pretensão e ação nem sempre surge no mesmo momento. É possível que cada um deles surja em momentos distintos. Nesse caso, teremos um fato jurídico para cada um, e isso no processo vai ensejar mais de uma causa de pedir remota.
Pode-se, portanto, perceber que quem vai me fornecer a causa de pedir é sempre o direito material, o qual no processo se transforma em res in iudicium deducta (relação jurídica deduzida no processo). Quanto maior for a complexidade dele, maior também será a complexidade da determinação da causa de pedir. Aquele que não atenta para isso, limitando-se apenas à análise da regras processuais, em especial as previstas no CPC, é apenas um bitolado e jamais pode se dizer, de verdade, um processualista. Não há processualista que não tenha minimamente noção de como funciona o direito material. Não é possível, igualmente, falar sobre direito processual sem uma noção mínima dos conceitos nos fornecidos pela Teoria Geral do Direito. Desafio alguém a mostrar o contrário.
No aguardo de oportunas considerações.
Recife, 23 de julho de 2011.
Roberto P. Campos Gouveia Filho