Apresentação

Este Blog, criado por dois advogados e professores de Direito Processual Civil, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (da UFAL) e Roberto Campos Gouveia Filho (da UNICAP), tem por finalidade precípua despertar a comunidade científica para o debate sobre a obra (não apenas, embora preponderantemente, jurídica) do mestre alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Todos são bem-vindos, sejam aqueles que seguem a obra, que a criticam ou, até mesmo, que a desconhecem.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O OBJETO DA RESCINDIBILIDADE SEGUNDO PONTES DE MIRANDA

Como cediço, a obra ponteana acerca da ação rescisória é das mais relevantes sobre o tema no mundo. Publicada pela primeira vez em 1934 com o título A Ação Rescisória contra as Sentenças, tendo recebido mais quatro reedições, a última em 1976, já com o título Tratado da Ação Rescisória[1], ela pode ser considerada sem maiores problemas como um verdadeiro divisor de águas na nascente Ciência Processual brasileira. Nela, Pontes de Miranda, já em 1934, estabelecia noções ainda atualíssimas como a diferença, no âmbito da Teoria Geral do Direito, entre a ação material e os remédios processuais, a feição material da ação rescisória e a distinção entre as sentenças inexistentes, nulas e rescindíveis.
            É lugar comum hoje na processualística, dispensando-se, por isso, qualquer referência doutrinária, dizer que a ação rescisória visa ir de encontro à coisa julgada material. Isso se deve, creio, em boa parte, ao modo como foi redigido o art. 485, caput, CPC, o qual faz alusão à sentença de mérito como objeto da rescisão. 
            Pontes de Miranda teve, todavia, um pensamento que, desde o início, discrepou do acima. Para ele, o objeto da rescisão é a coisa julgada formal. Além disso, a finalidade da ação rescisória não é única: rescindir para re-julgar. Pede-se a rescisão para: simplesmente cassar uma decisão transitada em julgado, desfazer uma decisão para que outra possa vir a ser reapreciada, ou, como é mais natural, rescindir para re-julgar. Em muitos casos, o que se visa é, portanto, retirar o óbice posto ao prosseguimento da litispendência, e tal óbice, como se sabe, é decorrência da coisa julgada formal. A meu ver, é essa a razão para Pontes por a coisa julgada formal como o objeto da rescisão.
            Dentre várias passagens não só do citado Tratado, mas também de seus Comentários ao Código de Processo Civil, notadamente o t. 5 dos Comentários ao atual CPC, nas quais Pontes faz questão de destacar o confronto com a coisa julgada formal, a seguinte merece todo destaque:
A ação rescisória vai, exatamente, contra a eficácia formal da coisa julgada: quebrada esta muralha de eficácia formal, já está o processado, a relação jurídica processual, que a preclusão fechara e fizera cessar; exsurge, não se reabre; o juízo rescisório não é reinstalação, mas volta à vida, ressureição. Não se reconstrói a causa, que se fechara; abre-se a porta (= destrói-se a sentença) e reocupa-se a casa[2].                
            Por essa brilhante lição do mestre, posso concluir o seguinte: a ação rescisória visa, retirando a coisa julgada formal (óbice à continuação da litispendência), fazer renascer a relação processual finda. Depois disso, tudo dependerá do interesse do autor.
            Tal tese tem uma finalidade prática sem tamanho, pois ela ajuda a explicar, por exemplo, a seguinte e intricada situação: suponhamos que o autor apela contra a sentença que declarou não ter ele direito ao que pretende (eficácia declaratória negativa da sentença). A decisão apelada, por certo, versa sobre o mérito do processo, sobre a res in iudicium deducta, portanto. Admitida a apelação pelo juízo a quo, venha ela a ter seu seguimento negado pelo relator no juízo ad quem, pois, no entender dele, o recurso seria intempestivo. Esta segunda decisão aplicou de forma equivocada o art. 557, caput, CPC, pois o suporte fático de tal dispositivo não estava configurado no caso em tela: o recurso era, sim, tempestivo. Não obstante o erro do julgador, o apelante, por motivo desconhecido (e irrelevante), não recorre, de modo que a decisão vem transitar em julgado. Ninguém deve ter dúvida que a decisão monocrática negatória de seguimento ao recurso não versa sobre a causa, não versa sequer sobre o mérito recursal (que, in casu, coincide com mérito causae). Ora, não obstante, tal decisão não seja de mérito, aplicando a tese ponteana, é possível rescindi-la para, simplesmente, obter o seguimento do recurso ao órgão colegiado competente para julgá-lo. Neste último aspecto reside o interesse do autor na rescisão. Vê-se, pois, num juízo de falseabilidade a inteireza científica da lição do mestre.
            Alguém poderia objetar afirmando que, caso aplicássemos a tese acima, teríamos de defender a rescindibilidade das sentenças de extinção do processo sem análise meritória, as quais, com a ressalva devida à hipótese do art. 268, caput, CPC, por produzirem, quando transitadas em julgado, apenas coisa julgada formal, não impedem a repropositura da demanda. Tal objeção, entretanto, não atentaria para o fato de que o problema acima passa longe da rescindibilidade. Trata-se de algo referente ao interesse de agir, o qual, na visão de Pontes de Miranda, se situa num plano pré-processual, devendo, por isso, ser analisado preliminarmente ao direito à rescisão (res in iudicium deducta do processo da rescisória).
            Espero, com isso, ter contribuído para o importante debate que gira em torno do objeto da rescisão, o qual não recebe, a meu ver, a devida importância por parte dos processualistas pelo fato de muitos deles ignorarem a importância de o Direito Processual Civil ser analisado de acordo com os cânones da Teoria Geral do Direito.
            No aguardo das considerações de todos, notadamente as de cunho crítico.
            Recife, 14 de fevereiro de 2011.
            Roberto Campos Gouveia Filho – Professor de Direito Processual Civil da UNICAP
  
           


[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ação Rescisória. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976.
[2] Idem, p. 173.

Um comentário:

  1. Olá. Fiquei contente ao ver que há pessoas divulgando as ideias de Pontes de Miranda.
    Exatamente hoje fiz prova de pós-graduação em processo civil. Umas das questões discutia relativização da coisa julgada. Aproveitei para fazer um adendo e abordar a superação da coisa julgada formal.
    Creio que essa tese de Pontes de Miranda é a mais acertada. Há outras em sentido diametralmente oposto, defendendo que sequer existe coisa julgada formal (Leonardo Greco), com argumento muito interessante.
    Penso no caso do autor que abandona a demanda duas vezes e, na terceira repropositura, o julgador entende que há, novamente, contumácia. No entanto, o julgador deixou de cumprir o protocolo do pár 1o do art. 267 do CPC. Ou no caso de demanda que a parte é legítima, mas a sua ilegitimidade ad causam foi discutida até o STJ, p ex, mantendo-se a sentença terminativa de primeiro grau.
    Em todos esses casos, muitos autores vêm defendendo a possibilidade de ação rescisória (Fredie Didier).
    O resgate da tese de Pontes vai ao encontro dessa doutrina. No entanto, nesses casos haveria interesse de agir apenas para levar a demanda até o mérito, diferentemente do que ocorre com a proposição originária, por que haveria interesse em superar um error in procedendo apenas se já tivesse havido decisão de mérito.
    Rafael.

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