Apresentação

Este Blog, criado por dois advogados e professores de Direito Processual Civil, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (da UFAL) e Roberto Campos Gouveia Filho (da UNICAP), tem por finalidade precípua despertar a comunidade científica para o debate sobre a obra (não apenas, embora preponderantemente, jurídica) do mestre alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Todos são bem-vindos, sejam aqueles que seguem a obra, que a criticam ou, até mesmo, que a desconhecem.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Primeiras Considerações Acerca da Nova Usucapião Familiar

Em conjunto com o professor da FDR-UFPE e UNICAP Roberto Paulino de Albuquerque Jr., escrevi, em julho do corrente ano, um breve arrazoado sobre alguns aspectos materiais e processuais da novel usucapião familiar, inscrita no art. 1.240-A, CC. O texto foi publicado na última Revista de Processo, a de n. 199.

Abaixo segue o inteiro teor dele.


      Em 16 de junho deste ano foi promulgada a Lei 12.424/2011, cuja finalidade principal foi alterar a Lei 11.977/2009, que trata do programa federal de habitação popular “Minha casa, minha vida.”
      Seu art. 9.º traz importante inovação, que consiste na criação de um novo suporte fático de usucapião, adicionando ao Código Civil o art. 1.240-A. Ao dispositivo em questão foi dado o seguinte texto:
“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1.º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 2.º (Vetado.).”
      O efeito da regra transcrita parece ser claro. Presentes seus requisitos, o cônjuge (ou companheiro:[1] seja a elipse doravante suposta) que permanece no imóvel adquirirá por usucapião a fração ideal que pertencia ao outro. Pode-se dizer que a norma consagra uma espécie de consolidação ou direito de acrescer, tornando-se o cônjuge remanescente proprietário exclusivo.
      Essa consolidação decorre, sem dúvida, de uma nova modalidade de usucapião, dada a aquisição do domínio por posse prolongada, modalidade esta que pode ser denominada de usucapião familiar.[2] [HFürst1] 
      Como se trata de usucapião, não é preciso que o cônjuge manifeste qualquer intenção de adquirir a meação do imóvel que pertence ao coproprietário – a aquisição decorre de ato-fato jurídico, em que a vontade é irrelevante, pois é abstraída pela norma jurídica. O suporte fático normativo dos “atos-fatos” jurídicos não tem, pois, a vontade como um de seus elementos. Basta, para sua concreção, apenas a mudança fática causada pela conduta (positiva ou negativa) humana. A vontade, nesse caso, se existir, não é juridicizada pela incidência, ficando restrita ao mundo fático.[3]
       Com a redução do prazo para dois anos de posse exclusiva depois da separação de fato, busca a regra privilegiar aquela que é a finalidade essencial de toda usucapião, a proteção da segurança jurídica.[4]
     Não se trata, portanto, de sanção ao cônjuge que deixa o lar, mas sim de uma forma de pôr fim ao condomínio, afastando o bem da partilha e regularizando a propriedade plena daquele que permaneceu no imóvel antes comum, não raro mantendo a guarda dos filhos.
     Os elementos necessários à configuração do suporte fático do art. 1.240-A do CC/2002 são os seguintes: (a) não ter o imóvel área superior a 250m², nem ser o usucapiente proprietário de outro imóvel urbano ou rural; (b) compropriedade do imóvel com o cônjuge; (c) posse exclusiva por dois anos, para moradia própria ou de sua família, contados do “abandono do lar” pelo cônjuge.
     A extensão e a ausência de outro imóvel vieram à regra por cópia do art. 183 da CF. Não parecem necessárias maiores digressões quanto a eles, ao menos não neste momento inicial, em que os requisitos (b) e (c) reclamam, sem dúvida, maior atenção da parte do intérprete.
    Quanto à letra (b), deve-se observar: não há usucapião bienal se o imóvel não pertencer a ambos os cônjuges.
     A finalidade da nova regra, como dito, é dar segurança ao status do coproprietário que possui o bem com exclusividade após a cessação da composse, retirando-o da partilha. Não pode o art. 1.240-A do CC/2002 ser alegado para acelerar, portanto, usucapião de imóvel de terceiro em que os cônjuges residam quando da separação.
    Não exige a norma, entretanto, que o imóvel tenha ingressado no condomínio por força da eficácia do regime de bens. Não é relevante que tenha o casal adquirido o imóvel por negócio gratuito ou oneroso, por título inter vivos ou mortis causa, ou mesmo que a aquisição se tenha dado antes do casamento ou união estável. Basta, para este fim, que quando da dissolução fossem ambos proprietários do bem.
    Por outro lado, dada a carga eficacial predominantemente declarativa da sentença de usucapião,[5] se os cônjuges já completaram o prazo para usucapir (de cinco, dez ou quinze anos) e não propuseram ainda a ação própria quando sobrevém a separação, passa a fluir o prazo bienal, pois já eram proprietários.
     Quanto ao “abandono” previsto no suporte fático, é preciso ter máximo cuidado.
     A infeliz e dúbia referência do legislador deve ser lida simplesmente como indicativa de separação de fato.
     A separação de fato, que mesmo depois da extinção da separação de direito pela Emenda 66/10 continua a existir e a produzir importantes efeitos jurídicos, como o da suspensão da eficácia do regime de bens,[6] passa a irradiar um novo efeito, que é o da contagem do prazo de usucapião bienal. E só.
    Abandono aqui não se deve entender como referência ao ato ilícito caracterizado pela infração do dever de vida em comum no domicílio conjugal (art. 1.566, II, do CC/2002). Salvo os deveres de mútua assistência e guarda, sustento e educação dos filhos, tem-se sustentado que os demais não são cogentes,[7] tendo sido há anos afastada de todo a função da culpa na dissolução do casamento.[8]
   Logo, não há por que duvidar de que o abandono previsto no art. 1.240-A do CC/2002 seja recepcionado como ato-fato lícito caducificante.[9] Dessa importante conclusão decorre a confirmação de que a usucapião familiar não corresponde a nenhum tipo de sanção para o cônjuge que se retira do lar conjugal. Pouco importa a aferição de culpa, quer para o deferimento do divórcio e apuração de seus efeitos, quer para a concessão da usucapião sobre a outra metade do imóvel de moradia. E neste sentido, o usucapiente pode, perfeitamente, ser o “culpado” à luz da teoria clássica do direito de família.
    Após enunciar os pressupostos da nova usucapião, cabe suscitar alguns questionamentos sobre o seu procedimento. 
     A que juízo compete processar a usucapião familiar? Embora se trate de dispositivo fadado à polêmica, não será possível aplicá-lo sem reconhecer a relação familiar, que se no casamento é formal e pressuposta, na união estável exige prova específica. Por outro lado, é preciso igualmente fazer prova da separação de fato, em qualquer dos dois casos. Ademais, o reconhecimento da usucapião no prazo bienal afeta diretamente a partilha, por afastar dela o bem cuja meação foi usucapida. Logo, parece razoável concluir que a competência pertença ao juízo apontado, na lei de organização judiciária do estado-membro ou do Distrito Federal, como competente para conhecer da dissolução do casamento ou união estável e da partilha de bens, evitando a remessa à vara cível de questões que lhe são estranhas.
     Por fim, não parece ser necessário, no específico caso da usucapião familiar, que o processo siga o procedimento especial da ação de usucapião, previsto nos arts. 941 a 945 do CPC.
Explica-se: o rito especial, com toda a sua complexidade, tem uma função particularmente clara, que é a de formalizar uma relação processual que se dá contra todos, para a declaração de que foi adquirido o direito real, cujo exercício se dá erga omnes.[10] A especialidade de tal procedimento está no edital convocatório dos réus hipotéticos, fixado no art. 942 do CPC. Trata-se de uma técnica de sumariedade de cunho pré-processual. Como, de acordo com o exposto acima, não há réus hipotéticos em tal ação, o procedimento especial não tem o menor sentido.
      Na nova modalidade de usucapião, este aspecto deixa de ter relevância. Se os cônjuges precisam ser titulares em conjunto do domínio sobre o bem, não há como ferir interesses de terceiros. Nem mesmo os confinantes poderão ser prejudicados, pois o pedido deve se restringir à declaração de aquisição da meação do cônjuge condômino no imóvel, nos estritos limites do direito previamente reconhecido. Por isso, o interesse em contestar a demanda pertence exclusivamente ao cônjuge que se retira do lar, sendo desnecessária a citação dos demais.
      Se por acaso os antigos coproprietários tiverem adquirido o bem por usucapião e, por qualquer motivo, não ter havido declaração judicial da propriedade, pode o cônjuge ou companheiro propor contra o outro a ação de usucapião, não para, obtendo a declaração judicial, criar a matrícula do imóvel ou alterar o registro, algo que seria inviável, mas sim para ver declarado que o imóvel não mais compõe, pela ocorrência da novel usucapião, a comunhão.
      Frise-se que, nesse caso, não seria possível a cumulação de ações – ação de usucapião contra todos (aquele em cujo nome o imóvel esteja registrado, se de fato existir, os confinantes e os outros réus hipotéticos) e ação de usucapião contra o cônjuge ou companheiro – pois o procedimento especial dos arts. 941 a 945 do CPC, seria incompatível com tal cumulação (óbice do art. 292, § 1.º, III, do CPC). Além disso, tal cumulação, se efetivada, seria do tipo sucessiva[11] e com uma pluralidade de sujeitos passivos incompatível com as regras vigentes do litisconsórcio, pois, na primeira ação cumulada, ambos os comunheiros seriam autores (ou, no mínimo, haveria a necessidade de citação do que não demandasse, na ratio do art. 47, parágrafo único, CPC) e, na segunda, um dos comunheiros haveria de ser réu, sem existir qualquer autorização legal para tanto.

Recife, 31 de outubro de 2011.

Roberto P. Campos Gouveia Filho.


[1] No contexto atual, não parece haver fundamento para afastar da incidência da regra do art. 1.240-A do CC/2002 os companheiros em união homoafetiva.
[2] A expressão deve-se aMarcos Ehrhardt Jr.: Ainda sobre o art. 1.240-A do CC, na busca de uma interpretação mais adequada: usucapião familiar? Texto gentilmente nos cedido pelo autor.
[3] Sobre a caracterização da usucapião como ato-fato jurídico, ver: Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. 11, p. 117-118; Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 142.
[4] Sobre a tutela da segurança na usucapião, consulte-se, por exemplo, Gambaro, Antonio; Morello, Ugo. Tratatto di diritti reali. Milano: Giuffrè, 2010. vol. 1, p. 873-874.
[5] Por todos, Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p. 147.
[6] Albuquerque Júnior, Roberto Paulino. O divórcio atual e sua repercussão no direito das sucessões. In: Ferraz, Carolina Valença et alii (orgs.). O novo divórcio no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 346-347.
[7] Lôbo, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 142.
[8] Confira-se Oliveira, Maria Rita de Holanda Silva. As causas legais da separação e a realidade social: estudo sócio-jurídico. In: Albuquerque, Fabíola Santos et alii. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodium, 2010. p. 183 e ss.
[9] Sobre os atos-fatos caducificantes, Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. Op. cit., p. 140-143. Confira-se Oliveira, Maria Rita de Holanda Silva. As causas legais da separação e a realidade social: estudo sócio-jurídico. In: Albuquerque, Fabíola Santos et alii. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 183 e ss.
[10] “Na ação de usucapião, são partes o autor (legitimado ativo) e todos. (...) O procedimento edital é pressuposto necessário da relação jurídica processual da ação de usucapião: somente por ele se pode completar a angularidade da relação jurídica processual: autor, Estado; Estado, todos interessados. A propriedade é direito com sujeito passivo total; as ações declarativas só podem ter eficácia sentencial entre as partes.” Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado das ações. São Paulo: Ed. RT, 1971. t. 2, p. 258-259.
[11] Sucessiva porquanto, para segunda ação de usucapião ser acolhida, é necessário que a primeira seja procedente. Em suma, o comunheiro só pode usucapir um bem do outro se, e somente se, ambos, anteriormente, tiverem-no usucapido de outrem.

 [HFürst1]Srs. Autores, por gentileza, verifiquem o link informado. Não conseguimos acessá-lo deste editorial. Grato.