Apresentação

Este Blog, criado por dois advogados e professores de Direito Processual Civil, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira (da UFAL) e Roberto Campos Gouveia Filho (da UNICAP), tem por finalidade precípua despertar a comunidade científica para o debate sobre a obra (não apenas, embora preponderantemente, jurídica) do mestre alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Todos são bem-vindos, sejam aqueles que seguem a obra, que a criticam ou, até mesmo, que a desconhecem.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O DIREITO PROCESSUAL AO RECURSO E SEUS PRESSUPOSTOS

O presente post, ao contrário do último por mim lançado, não tem a finalidade de descrever um determinado entendimento de Pontes de Miranda. Venho aqui expor a minha percepção acerca do direito processual ao recurso, mais especificamente da composição do suporte fático do fato jurídico que o gera. Desse modo, embora a base deste ensaio seja a Teoria do Fato Jurídico ponteana, não há uma estrita fidelidade ao que Pontes de Miranda desenvolveu, em seus Comentários ao CPC (especialmente o t. 7 dos Comentários ao CPC vigente), sobre o tema em questão.
Além disso, devo dizer que o cerne deste texto não é analisar o ato jurídico recursal (recurso) e seus pressupostos, mas sim algo que deve antecedê-lo: o direito ao recurso. Alguns dos pressupostos deste último coincidem com os pressupostos do ato recursal. Em outro post, irei tratar a problemática acerca dos pressupostos necessários à existência, à validade e à eficácia do ato recursal. Por conta de minhas convicções sobre o tema, algumas delas adiante externadas, terei de ir de encontro à mais consagrada de todas classificações dos pressupostos recursais, de autoria do professor José Carlos Barbosa Moreira, proposta há mais de quarenta anos. Por ora, fico com o direito ao recurso.
           Dito isso, posso prosseguir.
           De plano, devo fazer uma advertência. O direito processual ao recurso, aqui tratado, não é um direito sob o prisma da estrutura lógica da norma jurídica, mais especificamente no consequente normativo (preceito, na linguagem utilizada pelo professor Marcos Bernardes de Mello[1]). Falo do direito como um tipo de situação jurídica, portanto como uma das possíveis consequências de um fato jurídico.
       Sendo assim, fica fácil compreender o fato de que, tal direito, não surge, na relação processual, do nada, por geração espontânea. É preciso, pois, que algo dê ensejo a ele. Este algo só pode ser, dentro da teoria ponteana, um fato jurídico. Passo, portanto, a analisar o fato jurídico recursal.
            Para se analisar o fato jurídico de modo científico, deve-se, tal como demonstrou Pontes de Miranda, observar o seu suporte fático, pois, como cediço, fato jurídico é exatamente o suporte fático juridicizado pela incidência normativa. Assim, de que é composto o suporte fático do fato jurídico recursal? 
         O primeiro elemento que devemos analisar é a decisão, porquanto só se pode falar em recurso se houver uma decisão, já que, antes de tudo, os recursos são meios de impugnação de decisões. A decisão (ou sentença em sentido amplo) é um dos atos jurídicos que compõem a cadeia procedimental. Não basta, no entanto, uma decisão para o surgimento do direito ao recurso. É preciso algo mais.
       Se estou a falar de direito como situação jurídica, tenho, obrigatoriamente, de falar no sujeito que o titulariza (ou pode vir a titularizar). Não há, por certo, um direito sem um ente (individual ou coletivo, conforme o caso) que o titularize. Quais são os entes, desse modo, que podem vir a ser titulares do direito ao recurso? De acordo com o art. 499, caput, CPC: a parte, o terceiro e o Ministério Público. Digo, de logo, que vou deixar a problemática em torno da titularidade do direito ao recurso deste último para outro post. Ainda preciso melhor analisar os pormenores do problema. Fico, por ora, com a parte e o terceiro.
        Os entes acima mencionados são aqueles que podem vir a ter o direito ao recurso, são os entes, pois, legitimados para o recurso. A legitimação recursal da parte, a meu ver, é singela: basta, para tanto, o simples estado de parte, ou seja, o fato de o sujeito figurar em algum dos pólos da relação processual. Friso que, nessa noção de parte, se inclui também o assistente simples, muito embora haja, como cediço, a polêmica doutrinária acerca da condição processual dele (por ora, digo, amparado em Fredie Didier Jr.[2], que o assistente simples é, conquanto auxiliar de outra, parte). Ressalto, por fim, que não é necessária, para a legitimação recursal da parte, a sua legitimação para causa. Não podem ser confundidos, em nenhuma hipótese, esses dois tipos de legitimação. Até porque, algo que hei de destrinchar em outro post, a legitimação para causa pode vir a ser o mérito recursal, algo impensável em se tratando de legitimação para o recurso. Já em relação ao terceiro, entendo que sua legitimação para causa é deveras importante para a configuração de sua legitimação recursal, pois, do contrário, ter-se-ia de dizer que qualquer sujeito de direito que estivesse fora da relação processual poderia, e até mesmo de modo eficaz, interpor um recurso contra uma decisão contida num processo totalmente estranho a ele. Penso que, por isso, para a legitimação recursal do terceiro, se faz imprescindível a sua legitimação para a causa. Assim, o terceiro só pode vir a ter legitimação recursal se for titular da relação material deduzida (causa, mérito do processo), ou, não sendo titular, tiver o poder de discuti-la em juízo (legitimação extraordinária autônoma), ou, ainda, for titular de alguma relação jurídica conexa com a causa, a qual faz com que ele possa vir a sofrer os efeitos reflexos da eficácia da sentença, podendo, por conta disso, intervir na relação processual na qualidade de assistente simples de alguma das partes.      
       Entretanto não basta, para o surgimento do direito ao recurso, o fato de alguém poder titularizá-lo (poder ter legitimação relativa a ele), de modo a insurgir-se contra uma decisão judicial. Tal legitimação, sem dúvida, reside na titularidade do direito ao recurso. Algo mais precisa se inserido nesse contexto para a devida concreção do suporte fático em análise. Para a devida concreção e, consequentemente, o surgimento do direito ao recurso, é imprescindível que a decisão a ser proferida no procedimento recursal possa acrescer algo à esfera jurídica daquele que recorre. É preciso, pois, ter interesse. Sem interesse não há a configuração do suporte fático recursal. É o interesse, portanto, mais um dos pressupostos do direito ao recurso.


        O interesse recursal aparece para a parte quando esta não obtém tudo aquilo que poderia obter, muito além da simples sucumbência, ao menos em seu sentido formal[3]. Por exemplo, não se pode dizer que, diante da sentença de extinção do processo sem análise do mérito, o réu tenha sucumbido. Mas, caso ele, valendo-se do art. 249, § 2°, CPC, tenha pleiteado de modo prioritário pela improcedência do pedido, não se pode dizer ter ele obtido tudo que poderia. Logo há interesse recursal para o réu.


      Já para o terceiro, que em hipótese alguma pode perder (é ilógico dizer que aquele que não participa pode perder), o interesse recursal surge a partir do momento que sua esfera jurídica, atingida pela eficácia da sentença, vem a ser minorada, ou seja, se ele tiver prejuízo. Quando o caput do art. 499, CPC, fala em terceiro prejudicado, ele está a regular não só a legitimação, como também o interesse recursal do terceiro.  


       Assim, concluo: a) para que a parte venha a titularizar o direito ao recurso é necessário que haja a prolação de uma decisão que lhe seja contrária. Tendo-se isso, está configurado o suporte fático do fato jurídico recursal para a parte, de modo que, juridicizado tal suporte fático, surge para ela o direito ao recurso; b) para o terceiro, faz-se necessário que, tendo ele algum tipo de legitimação para a causa nos moldes acima descritos, sua esfera jurídica seja atingida pela eficácia da decisão.
O direito ao recurso já nasce dotado de exigibilidade, de modo que a ele já vem acoplada uma pretensão: a pretensão processual ao recurso. É por isso que, surgido o direito ao recurso, seu titular já pode exercê-lo, vindo a insurgir-se contra a decisão.
Não se pode, de modo algum, confundir tal direito e sua respectiva pretensão com outros direitos processuais, também dotados de pretensão, que com ele têm algum tipo de relação: é o caso da pretensão processual ao conhecimento do recurso e da pretensão processual ao provimento dele. Tais pretensões surgem a partir de outros fatos jurídicos diversos do fato jurídico recursal (= gerador do direito ao recurso e da pretensão a ele vinculada). Em outro momento, irei abordá-las.
Alguns fatos jurídicos, além disso, podem ocorrer para impedir que o direito ao recurso surja. É o caso, dentre outros, da renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação, da desistência da demanda (= revogação da demanda), do reconhecimento procedência do pedido e da transação feita pelas partes. Tais fatos, por óbvio, são anteriores ao surgimento do fato jurídico recursal. A norma jurídica que os regula tem eficácia pré-excludente de juridicização[4]. Os fatos impeditivos do direito ao recurso não devem, por fim, ser colocados no mesmo plano da ausência dos elementos necessários à concreção do suporte fático do fato jurídico recursal. No primeiro caso, como dito, há a incidência de uma norma jurídica pré-excluindo a possibilidade de outra incidir: a reguladora do suporte fático do fato jurídico recursal; no segundo caso, tal suporte fático não se concretiza. A falta da legitimação recursal e do interesse no recurso se enquadram no segundo caso.
Por fim, o direito ao recurso e a pretensão a ele vinculada podem, obviamente, ser extintos. Os fatos jurídicos com tal eficácia são: a renúncia a tal direito (art. 502, CPC), a aceitação, expressa ou tácita, da decisão (art. 503, reconhecimento da justeza da decisão no primeiro caso; prática de ato contrário ao interesse recursal, no segundo), o exercício regular dele (gerador de uma preclusão, de tipo consumador) e o transcurso in albis do prazo para seu exercício (gerador de uma preclusão, de tipo temporal).
Enfim, são essas as minhas considerações acerca do tema. Espero resposta de todos, notadamente aquelas de cunho crítico.

Recife, 09 de março de 2011.
Roberto Campos Gouveia Filho – Professor de Direito Processual Civil da UNICAP


[1] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 66 e segs.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 13. ed. Salvador: JusPODIVM, 2011, v. 1, p. 361.
[3] Há autores (Flávio Cheim Jorge, por todos) que entendem haver uma sucumbência formal e outra material. Apenas a primeira é relativa à derrota da parte.
[4] Sobre tal tipo de eficácia da incidência normativa, ver, com todo proveito, MELLO, Marcos Bernardes de, op. cit., p. 90-91.